sexta-feira, 28 de setembro de 2012

2. Comunidades Religiosas.

2.1. Igreja Católica.
Silva Rego considera que a história missionária moçambicana principia com a expedição dos Padres Gonçalo da Silveira e André Fernandes e do Irmão André da Costa, que fora enviada em 1560 pelo Vice-rei da Índia, D. Constantino de Bragança, com a finalidade de conversão do Monomotapa (1). Em 1563, Pio IV cria a Administração Eclesiástica de Moçambique e Sofala.
A actuação missionária da Igreja Católica nas terras onde os Portugueses chegaram com a sua cultura andou sempre relacionada com as actividades políticas, económicas, sociais e religiosas da Metrópole. Estas acabavam por ter o seu reflexo nos territórios e povos que a Santa Sé confiara a Portugal para evangelizar.
Moçambique pertencia ao Bispado de Goa, desmembrado do Bispado do Funchal em 1534, quando Paulo III, através da Bula Aequum Reputamus, cria aquela nova Diocese. Este novo Bispado compreendia toda a extensão territorial desde o Cabo da Boa Esperança até ao Japão. Em 1612, Moçambique passou a Administração Eclesiástica e, a partir de 1783, tomou a designação de Prelazia, tendo a sua sede na Ilha e depois (1898) em Lourenço Marques.
Consideramos como os principais motivos da decadência da acção missionária portuguesa a sujeição a Castela e as lutas da Restauração, a expulsão dos Jesuítas pelo Marquês de Pombal e as invasões napoleónicas; quanto aos territórios de Moçambique, os golpes mais acutilantes foram provocados pelo Decreto de Extinção das Ordens e Congregações Religiosas em Portugal, em 1834. Aquela legislação esvaziara conventos e mosteiros de religiosos onde era feito o recrutamento de missionários. Só entre 1881 e 1910, devido a um abrandamento da legislação, se pode notar um novo revigorar das Missões pelo regresso dos padres de Cernache, Jesuítas, Franciscanos e outros (2). Com a instauração da República, a crise nas relações Estado/Igreja foi reatada, por efeito da Lei da Separação do Estado e das Igrejas de 20 de Abril de 1911. Note-se o emprego do termo plural de Igrejas, vincando o carácter acentuadamente anti-católico da referida Lei.
Só a partir de 1919, com o Decreto N.º 6322, de 24 de Dezembro, e mais tarde com o Decreto N.º 8351, de 26 de Agosto de 1922, ambos do Ministro das Colónias, se incentiva um reactivar da actividade missionária. Em 1926, o Comandante João Belo, através do Decreto N.º 12485, de 13 de Outubro, promulgou o Estatuto Orgânico das Missões Católicas Portuguesas da África e Timor, a génese do Acordo Missionário e do Estatuto do mesmo nome.
O Regime, marcadamente assumido como de inspiração católica, ao considerar, no Art.º 24 do Acto Colonial, as Missões como instrumentos de civilização e influência nacional, e ao proteger e mesmo auxiliar os estabelecimentos de formação missionária, traçava novas perspectivas à missionação (3).
Até 1940, a Administração Eclesiástica de Moçambique manteve-se confiada a um prelado nullius (4). A partir do momento em que as relações entre a Santa Sé e o Estado Português se normalizaram, através da assinatura da Concordata e do Acordo Missionário em 7 de Maio de 1940 e da publicação do Estatuto Missionário a 5 de Abril de 1941 (5), punha-se termo à questão religiosa suscitada com a implantação do Liberalismo e agravada com a República (6), a acção missionária conhecia um importante incremento.
Com aqueles novos instrumentos políticos, o Estado Português garantiu à Igreja Católica o livre exercício da sua autoridade na esfera da sua competência (7). As Missões Católicas que eram “(...) consideradas instituições de utilidade imperial e sentido eminentemente civilizador (...)”(8), ficaram com a liberdade de expansão para exercerem formas de actividade que lhes eram próprias, nomeadamente para fundar e dirigir escolas (9), e os missionários, não sendo funcionários do Estado, eram considerados “(...) como pessoal em serviço especial de utilidade nacional e civilizadora (...)”(10) que deviam consagrar-se exclusivamente “(...) à difusão da fé católica e à civilização da população indígena (...)”(11). Assim, a Igreja na ordem política ficou profundamente identificada com o “Poder Colonial”. Após o Concílio Vaticano II e durante a guerra procurou, como veremos, diligentemente, “descomprometer-se”, como já antes alguns Prelados tinham começado a fazer, pelo menos em Angola e Moçambique.
Em princípio, os missionários deveriam ser portugueses, podendo, no entanto, os Ordinários das dioceses, em caso de necessidade e para suprir faltas, recorrer a missionários ou missionárias de outras nacionalidades. Estavam no entanto sujeitos a determinados requisitos, como serem chamados pelo Bispo com prévio acordo entre a Santa Sé e o Governo Português, e ficarem integrados em missões da organização missionária portuguesa. Além disso deveriam declarar expressamente a renúncia às leis e tribunais da respectiva nacionalidade, submetendo-se aos equivalentes portugueses (12).
O Governo da Metrópole iniciou o financiamento dos Institutos missionários, e dos orçamentos das respectivas Colónias saíam os subsídios para as Dioceses e circunscrições missionárias. O Governo concedia gratuitamente às missões terreno para o seu desenvolvimento e suas novas fundações (13). Era concedida ainda isenção de impostos ou contribuições para todos os bens das dioceses, circunscrições missionárias, institutos missionários e outras instituições eclesiásticas canonicamente erectas. A isenção dos direitos aduaneiros, de emolumentos, de impostos e de contribuições para a importação de imagens sagradas e outros objectos religiosos eram também contemplados no Acordo. Correspondia aos limites das dioceses e circunscrições, na medida do possível, a divisão administrativa.
Mas quer um quer outro não trouxeram apenas benefícios para a Igreja. Como veremos, o Estado intrometeu-se por diversas vezes no Poder e Jurisdição da Igreja, enquanto, por outro lado, durante a guerra, elementos do Clero actuaram por vezes muito agressivamente contra o Estado; lembramos, entre outros, o caso dos Padres Brancos, a “Jornada do Rato” em 1972 e as homilias do Bispo de Nampula.
Se a maioria das missões católicas em África estavam dependentes da Congregação Propaganda Fidei, nos territórios portugueses em África elas estavam sujeitas a um regime de Padroado. Após a assinatura da Concordata e do Acordo Missionário, o enquadramento canónico fazia-as depender da Secretaria de Estado do Vaticano, através da Nunciatura Apostólica em Lisboa. Esta situação nem sempre foi compreendida por alguns missionários estrangeiros que, segundo D. Ernesto Gonçalves Costa, “(...) sentiram dificuldade em se adaptarem e aceitarem as normas concordatárias estabelecidas entre a Santa Sé e a República Portuguesa (...)”(14). Apesar de a maioria se ter integrado, houve sempre alguns a quem nunca agradou a situação.
Pelo Acordo Missionário, foram criadas três Dioceses em Moçambique: Lourenço Marques, Beira e Nampula. Em 1954, é criada a Diocese de Quelimane, desmembrando-se a da Beira. Em 1957, é criada a Diocese de Porto Amélia, desmembrando-se a de Nampula. Em 1962 são criadas as de Tete e Inhambane, e em 1963 a de Vila Cabral.
Todas as Missões Católicas eram portuguesas e dependentes exclusivamente do Bispo da diocese. Podiam, no entanto, pertencer ao Arciprestado de uma Ordem religiosa estrangeira em que os Padres, na sua maioria ou totalidade, não eram Portugueses.
O facto de algumas Missões fornecerem apoio a elementos da FRELIMO, era naturalmente, considerado pelo Poder português como uma atitude de colaboracionismo com o inimigo. As Missões Católicas, assim como as populações, estavam por vezes entre fogo cruzados: de um lado as autoridades portuguesas, do outro a FRELIMO. Algumas, nas áreas mais nevrálgicas, a despeito de serem vigiadas pelo Exército e/ou pela PIDE/DGS, eram visitadas pela guerrilha, que obtinha apoio em alimentação, roupas e medicamentos, quando não em informações. Esta situação que criou problemas à Igreja, que se via coarctada na sua missão evangelizadora, levou a que alguns Bispos interviessem junto dos responsáveis do Poder português, por escrito e pessoalmente, em defesa quer dos missionários quer das populações (15).
As Forças Armadas Portuguesas tinham o seu próprio entendimento do papel desempenhado pela Igreja Católica durante a guerra. Nesta conformidade, a 2ª Repartição do Quartel-General analisou o problema no Supintrep “Panorama Religioso de Moçambique”, documento que além de aludir à evolução do Catolicismo em Moçambique, focando os aspectos dominantes da sua penetração e da sua estrutura, tece também considerações, julgadas pertinentes, sobre o comportamento de alguns missionários e Missões e a respectiva influência na subversão. Refere-se naquele documento que não se pretendia marcar nenhuma posição nem sequer estabelecer ou sugerir normas que regulassem os procedimentos dos militares para com determinadas Missões. Apenas se intentava esclarecer o pessoal militar sobre as possíveis causas das ilegalidades de membros de certas Missões, e informar, ainda que sumariamente, sobre as suas actividades (16).
Quanto à atitude da Igreja Católica relativamente à subversão, o Supintrep é extremamente cauteloso no tratamento do assunto, alertando para a necessidade de evitar generalizações em que, “(...) lamentavelmente, caem alguns relatórios sobre o procedimento francamente hostil dos sacerdotes católicos nas áreas subvertidas (...)”(17), pois, ainda com base naquele documento, era forçoso reconhecer que a maioria dos missionários católicos existentes naquela Província possuía um elevado sentido de servir e as suas actividades estavam ao abrigo de qualquer suspeita; era de salientar a diferença de atitude dos missionários portugueses da de alguns dos estrangeiros. Atitudes desfavoráveis destes últimos eram interpretadas quer como uma continuação das posturas políticas dos seus países de origem, quer pela preocupação de “descomprometer” a Igreja das suas ligações com o “colonialismo”. Mostravam-se receptivos à propaganda subversiva, que lhes prometia “(...) um lugar de evidência, após a expulsão dos colonialistas portugueses (...)”(18), pelo que certos elementos optariam por uma política de circunstância, devido ao receio de identificação da Igreja com a presença portuguesa em África. Assim, assumiam com frequência atitudes consideradas hostis à Soberania portuguesa, encobrindo actividades de carácter subversivo e, por vezes, colaborando directamente com elas. Salienta-se que estas atitudes pareciam corresponder à convicção de assim se poder fazer o descomprometimento da Igreja.
O mesmo Supintrep, na parte respeitante à Igreja Católica, exibe uma particularidade que o distingue de toda a documentação analisada ao longo deste estudo: apresenta uma classificação mais elevada do que a atribuída ao Supintrep, que é de Confidencial. Esta singularidade deve-se a instruções recebidas no Gabinete do Comando-Chefe para rever a situação de melindre, susceptível de levantar algum mal-estar nas relações entre o Estado e a Igreja. Deste modo, a solução encontrada consistiu em atribuir às folhas que referiam comportamentos hostis de algumas missões a classificação de “Secreto”. Estas seriam distribuídas num envelope, em separado, às Unidades que tinham responsabilidades nas áreas daquelas missões (19).
D. Eurico Dias Nogueira, na época Bispo de Vila Cabral, comenta este relatório no seu livro “Episódios da minha missão em África”, referindo ter ficado impressionado com as inverdades nas referências às Missões, o que criaria para com elas a animosidade dos militares (20). Pensamos, no entanto, que a análise feita pelo Quartel–General da Região Militar, provou com o tempo que o comportamento de alguns missionários, sobretudo estrangeiros, era de facto contrário aos interesses portugueses no território, levando com justiça à sua expulsão ou à não–renovação dos vistos de entrada.
Podemos dizer que a contestação da política portuguesa em África foi iniciada pelo “Profeta em Moçambique“, D. Sebastião Soares de Resende. Para D. Ernesto Gonçalves Costa, D. Sebastião “(...) esteve sempre na vanguarda dos que mais defenderam e lutaram pela justiça, pelos direitos humanos e pela elevação e educação dos moçambicanos (...)” (21). Para Adriano Moreira, D. Sebastião, inquietado por questões administrativas com o Estado e enredado em incidentes com a Censura, tinha por questão os Portugueses no Mundo, por adversário o problema das injustiças na sociedade colonial, como interlocutores os pobres e por eixo da roda o Evangelho (22). Aquele Bispo empenhou-se com insistência na necessidade de intervenção da acção social, combatendo as estruturas que incluíam o trabalho forçado, a negação de direitos políticos e a limitação efectiva do acesso ao ensino superior (que só surgiu no território em 1962), defendendo a abolição do Estatuto do Indigenato, e a criação dos estudos universitários na África Portuguesa, e sustentando a necessidade de integração na plenitude total dos Negros e Brancos em Moçambique (23).
Para Eduardo Mondlane, D. Sebastião era a excepção à regra dos mais altos dignitários da Igreja em Moçambique, que sempre revelaram tendência para prestar apoio à política e à conduta do Governo Português. Da interpretação feita das pastorais e das posições assumidas por D. Sebastião no “Diário de Moçambique”, jornal que dirigia, Mondlane considerava-o, apesar de contestatário das práticas políticas africanas portuguesas, apenas como um liberalista político e não como um reformulador radical; concebia um Moçambique independente, mas apenas dentro de uma comunidade de interesses portugueses (24).
O primeiro Bispo da Beira optou por uma postura polémica para o Poder. Na Carta Pastoral “Moçambique na encruzilhada” (25), datada de 1 de Dezembro de 1958, o discurso é nitidamente pela igualdade racial, pela justiça, pelo apelo à verdade e pelo bem. As suas pastorais eram escritas a partir de factos reais, de informações objectivas recolhidas por si ou pelos missionários, na área das missões (26). Só após possuir os factos, D. Sebastião passava à acção junto das autoridades ou através dos seus escritos, normalmente no “Diário de Moçambique”, o jornal da Diocese, que era, tal como os outros, submetido à Censura. A excepção foi a publicação da homilia feita aquando da comemoração moçambicana do 25º aniversário do Acordo Missionário. Por despacho do Governador-Geral, resultou na suspensão do Jornal por 10 dias.
Segundo Soares Martins, o “Diário de Moçambique”, na sua fase “contestatária”, dada a especial censura e vigilância que sobre ele se exercia, distinguia-se dos outros periódicos mais pelo que calava do que por aquilo que dizia, uma vez que não era possível ser emitida opinião. Aconteceu mesmo ter deixado, deliberadamente, de publicar discursos de Ministros e de Governadores-Gerais, a única possível manifestação contrária (27).
Em Moçambique, só após o Concílio Vaticano II e no seguimento das reflexões de D. Sebastião é que o processo de discussão do papel da Igreja no mundo moderno é encetado. Era a designada Renovação Pastoral Missionária, indicadora da necessidade de reflexão e mudança (28). A guerra veio forçar a Igreja a um marcar de posição política, e os reveses sofridos por esta (como a prisão ou expulsão de algumas Ordens e indivíduos) acabaram também por produzir benefícios para a luta independentista (29).
Os Bispos de Moçambique estavam sujeitos a várias formas de pressão, resultante não só de grupos de missionários que desejavam uma Igreja mais desvinculada do poder temporal, ao qual se ligava pela Concordata e pelo Acordo Missionário, mas, segundo o então Bispo de Inhambane, D. Ernesto Gonçalves Costa, “(...) mais ainda pela força censória e política que vigorava em Moçambique onde persistia uma guerra em que as pessoas de bom senso, mesmo alguns chefes militares, não acreditavam e para a qual não esperavam uma solução por meio das armas, mas através do diálogo entre as partes e conversações políticas (...)”(30). Todavia, não só os Bispos eram observados e incomodados pela sua postura; segundo D. Eurico Dias Nogueira, houve “(...) missionários que foram objecto de suspeitas gratuitas e acusações infundadas ou vingativas, não obstante a serenidade e o espírito de sacrifício, por vezes heróico, e de lealdade ao Poder português de que davam manifestas provas. Muitos deles foram incomodados com processos e investigações policiais (...)”(31). O próprio D. Eurico Dias Nogueira sentiu essas acusações: foi vigiado e objecto de insinuações malévolas que chegaram às altas esferas governamentais, tendo mesmo a sua correspondência sido claramente violada (32) (aliás prática comum do Poder, via PIDE/DGS, face a qualquer personalidade com reconhecida ou óbvia possibilidade de influenciar opiniões e /ou acontecimentos, nomeadamente por se tratar de uma situação de guerra global que determinava antipáticas mas necessárias “profilaxias” por parte do Poder).
Alguns Padres, mormente estrangeiros, assumiram, na realidade, atitudes contrárias ao Poder português e divulgadoras de certas situações resultantes da guerra, chegando mesmo a enviar cartas e relatórios aos superiores das Ordens, no exterior, ou a utilizar a imprensa internacional para denunciar ao mundo N acontecimentos no território. Estas eram normalmente detalhadas em factos e números, sendo disso exemplo a denúncia dos massacres de Mucumbura, em 1971, e de Wiryamu, em 1972, pelos Padres de Burgos (33).
D. Sebastião Soares de Resende, recorrendo às facilidades atribuídas pelo Acordo Missionário e por forma a responder às necessidades da Igreja na sua Diocese, convida Padres de Institutos e Ordens Religiosas estrangeiras. Estes missionários e outros eram dedicados à Igreja que pretendiam servir. Assim, e aceitando aquele convite, elementos da “Sociedade dos Missionários de África”, vulgarmente conhecidos por “Padres Brancos”, chegam a Moçambique em Maio de 1946. Em 1971, trabalhavam em Moçambique (Beira e Tete) 39 Padres Brancos das mais diversas nacionalidades, tendo a seu cargo, nas dioceses de Tete e Beira, 7 missões, 2 paróquias suburbanas e o Centro Catequético da Nazaré (34).
Estes Padres deixaram Moçambique por não aceitarem as políticas de afirmação da soberania portuguesa em África. A decisão da sua saída verificou-se em Fevereiro de 1971 e foi aprovada em 15 de Maio pelo Superior e Conselho Geral da Congregação, que publicaram uma carta em termos de denúncia das políticas levadas a cabo pelo Governo Português: “(...) O Conselho Geral gostaria de vos participar uma decisão que foi levado a tomar (...) decidimos retirar de Moçambique os Padres Brancos (...) razões muito graves estão na origem desta decisão. Por um lado, a ambiguidade fundamental duma situação em que a nossa presença acaba por ser um contratestemunho. Por outro, a sinceridade duma missão que se recusa, em África, a ter duas faces contraditórias (...) os missionários constatam que a confusão entre a Igreja e o Estado, mantida pela prática constante das autoridades civis e das autoridades religiosas é profundamente prejudicial à apresentação da mensagem evangélica e da verdadeira face da Igreja (...)”. Acrescenta ainda a referida carta: “(...) demasiadas vezes, certos actos do Ministério Apostólico, sobretudo os que teriam como objectivo a promoção de uma verdadeira justiça social são considerados como actividades subversivas e são, para certos militantes cristãos, com maiores contactos com a missão, pretexto para custosas vexações, até mesmo para prisões e maus tratos (...)”(35).
A reacção do Poder português foi obviamente a de considerar a carta ofensiva da dignidade nacional e, mesmo, contrária aos princípios e leis constitucionais, determinando a expulsão dos autores, num prazo de 48 horas, de acordo com a Lei geral aplicável no Ultramar a qualquer indivíduo cuja presença se revelasse indesejável. Assim, reagia àquelas atitudes como interferências nas actividades do Estado.
A Conferência Episcopal de Moçambique também reagiu com a emissão de um comunicado a 1 de Junho de 1971, manifestando o apreço e gratidão pela obra realizada pelos Padres Brancos em Moçambique ao longo de 25 anos, e lamentando a decisão de abandonarem o território. Neste documento a Conferência Episcopal rejeitava ainda as razões apresentadas na carta, afirmava saber que a decisão fora tomada sob influência de “grupos de pressão” contra a vontade expressa da maioria dos membros da Igreja, reafirmava a sua isenção política e a independência perante o Estado, e felicitava-se por aquela atitude isolada não ter sido partilhada por outros que tinham realizado obra missionária e de promoção digna de maiores elogios (36).
Mas já a “Mensagem do Conselho de Presbíteros da Beira”, datada de 13 de Agosto de 1971, assumia posição diferente da apresentada pela Conferência Episcopal cerca de dois meses antes. Esta mensagem, que expressava a inquietação religiosa, surge inserida na liberdade de expressão de que os religiosos gozavam, conjuntamente com o seu Bispo, no debate dos problemas da Igreja em Moçambique. Se por um lado nela se corroborava o conteúdo do comunicado da Conferência Episcopal relativamente ao trabalho realizado pelos Padres Brancos, por outro rejeitavam-se as acusações consideradas insultuosas contra Padres e Religiosas da Beira ou contra missionários, particularmente os não portugueses, considerados pelo Poder de “agentes de subversão”. Lamenta-se ainda a confusão do Evangelho com atitudes políticas, expressando o desejo de “(...) ver a Igreja em Moçambique mais independente e autónoma na sua própria esfera (...) livre dos compromissos e das ambiguidades que a desfiguram (...)”(37). Os Presbíteros da Beira ultrapassavam o historial de relacionamento entre a Santa Sé e o Poder português e os importantes instrumentos jurídicos que constituíam a Concordata e o Acordo Missionário.
A 1 de Janeiro de 1972 celebrava-se em toda a Igreja o Dia Mundial da Paz, sob o tema “Se queres a paz trabalha pela justiça”. Na tarde desse dia, o Padre Teles Sampaio, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus do Macutí, erigida por D. Sebastião, profere uma homilia no seguimento do tema dado pelo Papa para aquela celebração. Referiu que a Igreja devia denunciar, quer a nível nacional quer internacional, as injustiças, especificando, quanto a Moçambique: “(...) celebramos o Dia Mundial da Paz, estando em guerra em Moçambique. Antes não houvesse. Muitos querem convencer-se que não há. Muitos têm medo de dizer que há. A imprensa também não o diz (...) sabemos um pouco o que se passa no Norte, em Cabo Delgado e Tete (...)”(38), e denunciando depois actos deploráveis levados a cabo, segundo ele, por forças militares portuguesas na região de Mucumbura.
A 9 do mesmo mês, realizava-se a promessa de alguns “lobitos” do Corpo Nacional de Escutas. O Coadjutor da Paróquia e o Chefe do Agrupamento de Escutas entram em litígio sobre a presença, ou não, da bandeira nacional durante a referida cerimónia. Ultrapassada a situação, a bandeira acabou por estar presente durante a celebração. No fim da mesma, um inspector da DGS de imediato interrogou os padres e alguns escuteiros sobre os acontecimentos. Também acorreram ao local um jornalista e três oficiais do Exército não uniformizados (39).
No dia seguinte, surge no “Notícias da Beira” um artigo intitulado “Crime contra a harmonia racial — Padre Sampaio e Fernando, nós denunciamos” e cinco fotografias legendadas “Foi este o homem que impediu a entrada da Bandeira Nacional na Igreja do Macutí”(40). A 14, os Padres são presos e julgados um ano depois. O Acórdão do 1º Tribunal Militar Territorial de Moçambique, datado de 26 de Janeiro de 1973, que concede a liberdade aos padres, pode ser considerado um modelo de isenção do Poder Judicial face ao Poder Político (41).
Os Padres do Instituto Espanhol das Missões Estrangeiras, ou “Padres de Burgos”, chegaram à Beira em 1954, também a convite de D. Sebastião de Resende, sendo-lhes confiadas as Missões da Beira e Tete. Alguns deles denunciavam situações consideradas de violação dos Direitos do Homem, através de correspondência para o exterior, por vezes publicada. Estas cartas descritivas da actuação do Poder português foram apresentadas também na Assembleia Europeia “Justiça e Paz”, em 14 de Outubro de 1972, que acabou por emitir um comunicado onde assumia uma posição nitidamente contrária à política portuguesa nos territórios ultramarinos e em favor da autodeterminação (42). Esta atitude e a colaboração com alguns grupos da FRELIMO conferiram-lhes um estatuto de inconvenientes, pelo que se verificaria também a sua expulsão.
D. Manuel Vieira Pinto, ex-Padre na Diocese do Porto e responsável pelo “Movimento por um Mundo Melhor”, é sagrado Bispo de Nampula em 13 de Março de 1967. Em Janeiro de 1974 torna público um documento elaborado por si, intitulado “Repensar a Guerra”. Este documento, que surge como um convite à paz, ao desenvolvimento e à autodeterminação de Moçambique, apresenta-se bem ordenado, fundamentando-se na Doutrina da Sagrada Escritura e no Magistério da Igreja, aplicando-os ao contexto moçambicano. As citações referentes àqueles textos são diversas, assim como às encíclicas Pacem in terris, de João XXIII e Populorum Progressio, de Paulo VI, aos discursos deste último ao Parlamento de Kampala, em 1 de Agosto de 1969, ao Sacro Colégio, em 28 de Dezembro de 1973 e à mensagem para o 7º Dia Mundial da Paz (43).
D. Manuel Vieira Pinto afirmava, numa postura abrangente, que a paz era o ideal da humanidade e que a mesma era necessária, possível e obrigatória. Porém, importava não a confundir com a ordem estabelecida, com as forças da ordem, com a ausência de armas, com o medo dos fracos, com a repressão dos fortes, com o silêncio dos mortos. Segundo aquele Prelado, a paz é algo que se devia não apenas manter, mas produzir a partir da verdade e da justiça, assentando sempre no Homem. Homem que sofria em Moçambique, havia já doze anos, a dureza da guerra. A paz em Moçambique impunha, pois, antes de mais, o dever de repensar a guerra. Apoiando-se em palavras do então Presidente do Conselho, Marcello Caetano, sobre a guerra subversiva, questionava se seria lícito referir que nas Províncias existiam a paz e segurança, afirmando que a guerra era uma realidade no território desde 1964. Explicitando a Populorum Progressio, afirmava o direito do povo moçambicano à autodeterminação e à escolha livre das suas próprias instituições políticas, culturais, económicas e sociais: “(...) A Igreja vê na autodeterminação política dos povos um sinal positivo do crescimento da consciência e da liberdade do Homem e dos povos, e ao mesmo tempo um avanço no processo de libertação e de comunhão da humanidade em Jesus Cristo (...)”(44).
Para ele, a paz e a guerra não dependiam só dos outros (movimentos fomentados, apoiados e baseados no exterior), interrogando-se sobre se estes conflitos não seriam uma consequência de injustiças passadas e presentes, de opressão à dignidade, ao crescimento e à expressão cultural(45). Ali condenou a guerra e o facto de não haverem sido envidados esforços para alcançar uma paz honrosa, considerando “(...) injustas e criminosas as operações militares, ou as acções de guerrilha, que não respeitem o direito à vida, à dignidade e integridade da pessoa humana, a imunidade das populações civis (...)”(46); denunciou a trágica situação das populações cuja conquista era disputada pelas partes em confronto, que as sujeitavam a represálias, a raptos e à destruição das habitações e dos bens de vida, especificando a ilicitude dessas actuações, pois em qualquer circunstância lhes assistia o direito ao respeito da sua dignidade e liberdade; questionando a medida de segurança dos “aldeamentos”, quando construídos como estratégia de guerra e não respeitando a dignidade e liberdade das populações; considerando ainda ilícito o fomentar da violência junto das populações civis, como eventual barragem contra um inimigo definido ou latente (47).
Como era de prever, este documento, abertamente contra a situação vivida no território, condenatório quer das actuações militares dos Portugueses quer das acções da FRELIMO, não foi bem encarado pelo Poder. Mas aquele Prelado, juntamente com 34 Padres, 19 Irmãos e 41 Irmãs, surge, no mês seguinte, com um novo documento na mesma linha do anterior, intitulado “Imperativo de Consciência”. Ali se acusava a hierarquia eclesiástica de ambiguidades e de compromissos com o Poder português, a renúncia da Igreja ao múnus profético, o deixar a Igreja tornar-se num contratestemunho nas relações com o Poder e na sua missão evangelizadora dos povos (48).
Pedia-se naquele documento:
– que a Hierarquia declarasse existir em Moçambique um povo com cultura própria e com direito à autodeterminação;
– que reconhecesse como legítimas as reivindicações dos movimentos de libertação conformes aos direitos dos homens e ao Evangelho, levando os responsáveis a resolver os conflitos por meios justos e pacíficos e oferecendo-se, se necessário, como intermediária;
– que aquela renunciasse à Concordata e ao Estatuto Missionário;
– que renunciasse a colaborar no ensino do Estado, a subsídios e outros privilégios;
– que criasse novos órgãos de informação e estimulasse a formação de uma verdadeira e sã opinião pública, e a formação de elites a nível eclesial, social, económico e político;
– que a Conferência Episcopal do território se integrasse na Conferência da África e Madagáscar;
– que a Igreja de Moçambique passasse a depender da Congregação da Evangelização dos Povos (49).
Os Cambonianos decidiram, por fim, com o seu Bispo, acatar as propostas dirigidas à Hierarquia, mas continuando a trabalhar pela promoção do povo, pela formação profissional e pelo desenvolvimento comunitário.
Estes documentos controversos para o Regime e que inicialmente circularam com algumas restrições foram colocados à disposição do público, tendo sido lido para o efeito, a 10 de Março de 1974, um comunicado da Secretaria da Diocese em todas as paróquias de Nampula.
A reacção do Poder foi tentar virar a opinião pública contra o Bispo e os seus missionários e ordenar a respectiva expulsão.
A 5 do mesmo mês, três padres recebem ordem de expulsão; a 6, mais três padres recebem a mesma ordem, todas para o dia 20. A situação é contestada pela Diocese. As ordens de expulsão são antecipadas para 11. Após a distribuição nas missas dominicais dos documentos atrás citados, as ordens de expulsão são adiadas de novo para 20. Entretanto, a Santa Sé envia o Núncio Apostólico, Mons. José Maria Censi, para que este se inteire da real situação da Igreja em Moçambique. A 22, realiza-se uma Assembleia da Conferência Episcopal, em Quelimane, da qual resulta um comunicado não divulgado na Metrópole, devido à Censura. A 27, há uma nova reunião do Episcopado, sendo emitido a 31 um comunicado onde se refere a ânsia, “(...) a partir de diversas posições, pela consecução de uma paz justa, estável e fecunda, que favoreça num clima de fraternidade, o progresso de toda a sociedade moçambicana (...)”(50). Naquela reunião foi explicitamente assumido pelos Bispos delegados e pelo Núncio Apostólico “(...) que a Igreja em Moçambique não estava contra a autonomia e independência, mas não competia à Hierarquia assumir e estruturar o processo conducente a tais objectivos, mas às populações na sua generalidade (...)”(51).
As manifestações continuaram. O Governador do Distrito de Nampula, em 10 de Abril, impõe a D. Manuel uma saída temporária para a Namaacha, tendo-lhe sido garantido o regresso. Mas, a 14, a DGS comunica-lhe que, por ordem do Governo, tem de deixar Moçambique naquele mesmo dia.

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