quarta-feira, 12 de setembro de 2012

As histórias que o mundo prefere ler

As histórias que o mundo prefere ler

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Não são poucos os que afirmam que o actual protagonismo dos livros autobiográficos se deve ao declínio da poesia e da ficção narrativa, géneros actualmente incapazes de mostrar a pujança de outros tempos e por essa razão seduzir um público leitor cada vez mais exigente
Na velha Europa e um pouco por todo o lado, uma outra abordagem literária, embora não sendo nova, está a conquistar um espaço cada vez maior, refiro-me aos livros de memórias, ou biográficos ou como os queiram chamar. Os livros de memórias, ao que se sabe, estão sendo um verdadeiro sucesso editorial.
Não há quem resista à curiosidade de novas revelações que esses livros sempre trazem: as infedilidades e aventurosas amorosas; os cometimentos mais ou menos escandalosos que o fulano ou a distinta fulana foram protagonista; se se tratar duma figura politica, as traições partidárias, os jogos sujos dos bastidores para vencer uma campanha; e no caso de um escritor, as suas fragilidades literárias, as lágrimas derramadas perante uma folha em branco, os críticos a quem teve de pagar um jantar para escreverem páginas abonatórias ao seu respeito. Tudo isso serve para tornar um livro de memórias apetecível, um verdadeiro « best seller ». Todas essas estorietas constituem, hoje, aquilo que o mundo prefere ler.
Não são poucos os que afirmam que o actual protagonismo dos livros autobiográficos se deve ao declínio da poesia e da ficção narrativa, géneros actualmente incapazes de mostrar a pujança de outros tempos e por essa razão seduzir um público leitor cada vez mais exigente. Sejam quais forem as razões que se queiram atribuir ao sucesso dos livros de memórias, é quase evidente que a sua aceitação se deve certamente ao nome das figuras a que esses livros de memórias estão ligadas. Os livros autobiográficos que correm o risco de ficarem para sempre famosos pertencem, sem dúvida nenhuma, a homens e mulheres cujas vidas marcaram, duma ou doutra forma, o lugar onde viveram e também o seu tempo. Os editores, profundos conhecedores do mercado, sabem, por exemplo, que uma figura controversa pode muito bem ser um bom investimento editorial capaz de gerar bons rendimentos. Sabem também que determinadas personalidades que gozam de enorme prestigio podem contribuir para fazer um bom negócio. Repare-se, por exemplo, o caso do livro « Assim morreram os ricos famosos” – biografia e memória – sobre como foi a morte das grandes personalidades da história: Elvis Presley, Marilyn Monroe, Albert Einstein, Adolf Hitler. Ou então o triste e comovente livro « The time of my life », do actor Patrick Swayze, que este escreveu para descrever a sua luta de vinte meses contra um câncer que acabaria por o vencer.
Muito recentemente, o mundo assistiu ao lançamento do livro de memórias duma das figuras mais prestigiadas da actualidade, Nelson Mandela; o carisma que o envolve, os seus ideiais pacificos sobejamente conhecidos, a sua dignidade e personalidade e o extraordinário percurso de resistência e de luta para a libertação do seu País, fazem prever que o seu livro « Conversas Comigo Mesmo » poderá se tornar nos próximos dias num enorme êxito editorial. Há quem diga que o mesmo sucesso poderá perseguir também o livro autobiográfico de George Bush, o presidente norte-americano que permanecerá para sempre na memória de muitos pelas decisões controversas que foi tomando ao longo do seu conturbado mandato, que culminaria com o inesquecível momento em que o cidadão iraquiano, Muntadhar al-Zaid, para expressar a dimensão do seu desacordo relativamente as politicas do Presidente americano, atirou-lhe os seus dois sapatos durante uma conferência de óa autobiografia de Bush, « Decision Points », será dos títulos mais vendidos neste limiar do ano dois mil e dez.
Nos últimos tempos assiste-se em Moçambique à um numero cada vez crescente de autores a apresentar em público as suas memórias. O exemplo mais expressivo é nos dado por alguns dos mais destacáveis combatentes da luta de libertaçâo nacional, que desempenharam altos cargos no partido dos camaradas. As suas histórias teem vindo a proporcionar leituras apeteciveis, obviamente pelo facto dessas mesmas histórias aludirem a factos e situações particularmente interessantes que durante longos anos permaneceram no segredo dos deuses; como se sabe, as lutas de libertação, para além do seu lado mítico e histórico, transportam consigo muitos mistérios, segredos que as vezes aompanham toda uma vida os seus protagonistas, perpetuando zonas de penumbra que podem dificultar a compreensâo dos processos de libertação. Talvez seja por essa razão que livros como « Memórias em Voo Rasante », de Jacinto Veloso, uma obra com revelações inéditas para quem queira conhecer os últimos quarenta anos da história da África Austral ; ou ainda mais recentemente « Participei, Por Isso Testemunho », escrito por Sérgio Vieira, que Luis Bernardo Honwana considera uma das figuras de quem o depoimento era aguardado com a maior curiosidade, pelas funções que durante a Luta Armada desempenhou e pelos cargos que ocupou após a Independência. Mas também e, sobretudo, pela fama de grande polemista que granjeou na Assembleia da República e nas páginas da imprensa moçambicana. Fama a que Sérgio Vieira nunca deixa de fazer jus, com entusiasmo e verdadeiro sentido de missâo, em todas as oportunidades que se apresentam. De autores menos polémicos, sem no entanto a sua obra perder a devida importância, podemos fazer referência ao « II Congresso » , de autoria de Raimundo Pachinuapa, « Porquê Sacrane ?», escrito por Helder Martins e « Memórias da Luta Clandestina », de Matias Mboa, combatente da Quarta Frente da guerra contra o colonialismo português, a chamada Frente Clandestina. Para Honwana, o facto paradoxal que essa aparente abundância (de memórias) evidencia, é justamente a escassez, entre os dados primários disponíveis, do testemunho autêntico e do relato vivido, que possam equilibrar a visâo muitas vezes construida sobre uma base documental estreita e contaminada por preconceitos .
Muito recentemente tive o prazer de fazer uma revisitaçâo ao livro « Memórias de Raul Bernardo Honwana », que o meu amigo Nelson Saute e a Editora Marimbique fizeram questao de recolocar no mercado. É uma obra de indiscutivel importância ( nâo é, aliás, por acaso, que estamos agora perante uma terceira ediçâo) cujo objectivo é essa tentativa de preservaçâo do passado, reivindicando para o presente a história longa e rica que antecedeu a guerra. Raul Honwana preocupou-se em traçar perfis e enaltecer as contribuições de homens como Joâo Albasine, Robert Machava e ainda os fundadores do « Instituto Negrófilo » e do « Congresso Nacional Africano », que lutaram contra a opressâo racial. Em meu entender, um dos factores que tornam este livro interessante é exactamente o de mostrar que existem outras histórias e outros heróis que a história oficial não canoniza, reivindicando para a plêiade dos libertadores da Pátria todo o protagonismo e toda a heroicidade na construçâo da nossa liberdade. Na introduçâo à edição inglesa Allen Isaacman se refere entre outras coisas que o livro de Honwana foi, simultaneamente, largamente aclamado e controverso e que a sua história é uma visâo única da colónia de Moçambique. Ao longo da obra, ele refere-se a alguns aspectos importantes, tais como o papel dos « assimilados », o modo como o racismo determinava o dia-a dia dos não-europeus, independentemente da classe a que pertencessem, e a variedade de mecanismos que os africanos utilizavam para enfrentar e lutar contra a opressão colonial. A autobiografia de Raul Bernardo Honwana descreve ainda as longas batalhas entre os nacionalistas do Sul de Moçambique e o Congresso Nacional Africano – um assunto de importância histórica e contemporânea.