domingo, 16 de setembro de 2012

As relações entre a igreja e o Estado depois da independência: nuances, discórdias e perspectivas

Análise
Por Eric Morier-Genoud
O debate sobre as igrejas e o Estado após a independência ganhou mais um contributo de João Cabrita a semana passada. Nas primeiras páginas do jornal, ele discorda fortemente com a minha análise das relações entre Estado e instituições religiosas após 1975.
O debate se enriquece assim com mais um contributo, mas parece-me que estamos a chegar a um ponto onde temos simplesmente de aceitar que discordamos.
Para concluir, quero esclarecer no entanto alguns dos meus argumentos e contrastar as nossas perspectivas.
Na minha entrevista inicial no Canal de Moçambique, de Julho passado, eu afirmei que era difícil promover novas perspectivas na análise de alguns assuntos quando os debates sobre eles oscilam entre posições absolutistas (tudo é unicamente bom, ou unicamente mau). Falava eu da história do nacionalismo, mas está agora claro que é o caso da história da religião também. Sobre a política da Frelimo em relação às igrejas, João Cabrita argumenta que não pode haver nuances ou meio termos, pois “ou há combate, ou não há”. E já que eu trouxe nuances à análise, ele acusa-me de “levantar dúvidas sobre a natureza totalitária do regime após 1975”.
João Cabrita leu os meus textos e sabe muito bem que eu não ponho em dúvida a natureza totalitária do regime após a independência e ainda menos levanto dúvidas sobre o ataque contra religião no país como ele tenta insinuar.
Documentei pormenorizadamente este período nos meus trabalhos científicos e até chamei o Estado no fim dos anos 1970 de “Estado Teólogo”. Portanto, o problema não esta aí.
O problema é que, para Cabrita, a natureza totalitária do regime após 1975 é absoluta e indiscutível enquanto para mim foi variável e ela é para ser analisada, discutida e debatida.
A minha análise mostra que existiram em Moçambique diferentes períodos nas relações entre Estado e Igrejas após 1975 (o que significam diferentes graus e formas de totalitarismo).
Podemos falar de dois, ou melhor, três períodos. Primeiro, entre 1975 e 1977, quando a Frelimo teve uma política de secularismo forte e de submissão das instituições religiosas ao regime.
A seguir, o período entre 1978 e 1982, quando o regime tentou acabar com a religião e substitui-la com o ateísmo – a fase do “Estado Teólogo”. Finalmente, os anos após 1982, quando o Estado abandonou a sua pretensão teológica e passou a outro regime de secularismo, com forte controlo das instituições religiosas.
A controvérsia entre Cabrita e eu gira sobretudo em torno de saber se o regime era anti-religioso antes de 1977. Eu acho que não; Cabrita acha que sim. Ele diz que a Frelimo combateu as igrejas desde o início e que a questão dos graus não importa, pois “há combate ou não há”. Na minha perspectiva, a Frelimo não tentou acabar com a religião antes de 1977-78. Se tivesse, como se explicaria que religiosos pudessem ser membros da Frelimo até 1977?
E como se explicaria que o regime esperasse até 1978 para fechar igrejas e começar a propagar oficialmente o ateísmo? Simples táctica?
Podia ser, mas isso implicaria dizer que a Frelimo tinha tudo planificado desde o início, que sempre controlou tudo e que nunca mudou.
E falta explicar porque é que foi preciso esta táctica.
Ainda na minha perspectiva, a Frelimo teve na altura da independência que reintegrar na sua liderança elementos na clandestinidade no país e fazer alianças internas para assentar o seu regime, e algumas destas alianças/reintegração foram com crentes, o que mudou a dinâmica da liderança da Frente. As coisas mudaram no entanto em 1977 com o III Congresso, quando a Frelimo se transformou em Partido-Estado e excluiu das suas fileiras e da sua direcção os religiosos. A Frelimo usou então a linguagem da “purificação das suas fileiras”, mas esta expressão foi usada precisamente para dar impressão que não havia mudança. Na verdade, houve uma radicalização e é esta radicalização que levou a Frelimo a tentar acabar com a religião no país e tentar converter o povo ao ateísmo durante 3 anos.
Outro assunto de controvérsia entre Cabrita e eu, é a “Circular” de 1975 do Comissário Político Nacional Armando Guebuza. Para Cabrita, a Circular mostra que o regime era anti-religioso desde o início.
Na minha análise, a circular mostra que o regime exigia submissão e tencionava reprimir todos os que se opunham, ou não se submetiam, ao regime. A repressão das Testemunhas de Jeová e de pastores evangélicos e ziones (justificada ou não) se enquadrou nesta política – e não numa tentativa de acabar com a religião no país.
Podemos concordar que as duas políticas foram negativas, mas não posso aceitar que é tudo a mesma coisa.
Se ler os jornais nacionais e internacionais da época (e.g. 1976), há-de ver que, se alguns religiosos já gritavam à perseguição comunista à igreja, muitos outros (inclusive bispos católicos insuspeitos de simpatia de esquerda) diziam que havia problemas, mas não perseguição.
O terceiro elemento de discórdia tem a ver com as nacionalizações de 1975.
Para Cabrita, isto foi o primeiro ataque à religião em Moçambique e não foi nada justificado porque já não havia mais concordata e a igreja católica tinha mudado com o Vaticano II. Na minha óptica, as nacionalizações não foram o primeiro passo dum suposto plano pré-estabelecido de acabar com a religião e as nacionalizações justificavam-se.
Não foi plano pré-estabelecido porque a liderança da Frelimo teve que mudar para virar oficialmente anti-religiosa. E as nacionalizações justificavam-se porque se a concordata não existia mais, a igreja católica continuava a controlar quase toda a educação no país assim como uma boa parte da saúde. Ora isto não podia ser, porque ia comprometer a natureza laica do Estado, e ia causar problemas ao partido no poder.
Não é por acaso que esta medida foi bem acolhida pela maioria dos protestantes, muçulmanos, ziones e outras instituições religiosas não católicas. Aliás, até dentro da própria igreja católica, havia grupos significantes que estavam a favor de acabar com o modelo duma igreja de poder!
Para concluir, qual é a importância das diferenças entre a minha perspectiva e a de Cabrita? Na visão de Cabrita, a Frelimo foi sempre totalitária e anti-religiosa. Todas as acções desfavoráveis à religião foram injustificadas e foram planificadas pela Frelimo desde o primeiro dia da independência com o grande objectivo de acabar com a religião. Nesta perspectiva, a Frelimo parece um monstro Gargamel! Em contraste, na minha perspectiva, a Frelimo foi totalitária, mas também dinâmica.
Ela mudou internamente com o tempo e alterou as suas políticas, só chegando a ser realmente anti-religiosa entre 1978 e 1981. Será isto só nuances? Qualquer que seja a resposta, a minha perspectiva tem a vantagem de mostrar algo da dinâmica interna do regime e de explicar com subtilidade o que aconteceu em relação à religião no país após a independência.
Canal de Moçambique - 12.09.2012