terça-feira, 18 de setembro de 2012

Foi uma tarefa gigantesca pôr a funcionar os hospitais deste país

Foi uma tarefa gigantesca pôr a funcionar os hospitais deste país

Fernando do Rosário Vaz
Fernando do Rosário Vaz foi um combatente na clandestinidade pela independência de Moçambique, bem antes da criação da Frelimo. Foi director do Hospital Central de Maputo no Governo de Transição e, logo após a independência, foi médico-assistente de Samora Machel. Em 1980 é nomeado vice-ministro da Saúde, e de 1986 a 1988 ocupou a pasta de ministro da Saúde. De 1977 a 1994 foi deputado da Assembleia Popular de Moçambique.
Fernando Vaz inicia a sua vida política fora de Moçambique, na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, na década 50. Como chega à Casa dos Estudantes do Império?
Antes de responder à sua pergunta, gostaria de agradecer este honroso convite de poder participar neste seu programa de 50 anos da vida da Frelimo. Considero este programa extremamente importante, porque consegue, de cada um de nós, extrair aqueles pedaços da história deste país e da história da Frelimo. Queria em seguida  cumprimentar, também, os telespectadores da Stv e pedir-lhes alguma tolerância e paciência para ouvirem o pouco que tenho para informar sobre a minha participação na criação da Frelimo e, sobretudo, no desenvolvimento deste país. Relativamente à pergunta que me fez, bom, eu nasci em Maputo, há 83 anos. Estudei aqui desde o ensino primário ao secundário. Sou filho de pais que vieram de Goa há um século para Moçambique. Fiz o ensino secundário e, como era bom aluno, fui premiado com uma bolsa de estudo para fazer o curso de Medicina. Partimos em 1949, digo partimos porque muitos de nós saímos naquela altura. É o caso do meu amigo da escola primária Marcelino dos Santos, que partiu para Lisboa para fazer o curso de Engenharia e  muitos outros. O ponto de encontro estratégico em Lisboa era precisamente a Casa dos Estudantes do Império. Aquela Casa reunia não só os estudantes de Moçambique, como todos os estudantes das ex-colónias do ultramar, como eles chamavam. A Casa dos Estudantes do Império era, de facto, um viveiro, um alforge de líderes, de intelectuais que conseguiram fazer avançar todos os movimentos de emancipação das ex-colónias. É o caso do Eng. Amilcar Cabral, do Dr. Agostinho Neto, do Dr. Mário Pinto de Andrade, enfim, era uma série de gente de alto nível intelectual e todos envolvidos em movimentos de libertação. Havia dois aspectos essenciais na Casa dos Estudantes do Império: um deles era, de facto, o movimento libertador e de emancipação dos povos das colónias; o segundo ponto tinha a ver com o derrube da ditadura salazarista em Portugal.
E como é que se desenvolvia a vida política na Casa dos Estudantes do Império?
Bom, a verdade é esta: nós os estudantes que vivíamos na Casa dos Estudantes do Império tínhamos 24 horas por dia à nossa disposição. A nossa missão principal era estudar, obter o melhor conhecimento possível. Mas já imaginou  estar numa grande cidade sem problemas de manutenção e alimentação! Sobrava tempo para outras actividades lúdicas e para a vida associativa e política. É evidente que a vida política, muitas vezes, predominava em relação à vida académica  e os estudantes foram sempre contestatários. Muitos dos nossos colegas não acabaram os cursos. Eu, felizmente, acabei o curso. Ainda fui presidente da Casa dos Estudantes do Império e, de facto, aquela casa era, extremamente, movimentada. Com uma agitação política muito grande, desfavorável,  a situação chegou a tal ponto que o governo português achou que devia encerrar.
Antes de avançarmos para o assunto relativo ao encerramento da Casa dos Estudantes do Império, gostava de perceber se este sonho ou desejo de independência, na altura, na década 50, era algo que imaginavam ser alcançável ou ainda era muito utópico?
Sim, sempre sonhávamos com a independência de todas as colónias. A unidade de pensamento entre todos foi sempre um factor decisivo. Desde que o colono ocupou e iniciou o processo de colonização, houve sempre um movimento de resistência, no sentido da independência. O povo moçambicano sempre lutou pela sua independência. Evidentemente que sempre que há uma ocupação surge um movimento contrário de expulsão daquele que explora, neste caso o colono. Nós intelectuais assumimos todo este pensamento que já vinha há séculos. Então, como intelectuais, tínhamos essa obrigação de teorizar todo o sentimento de revolta e desejo de emancipação dos povos que eram dominados.
Por falar em revolta, a Casa dos Estudantes do Império foi sempre vista como um centro de actividades subversivas não só contra a ditadura de Salazar, mas também pela emancipação dos povos das colónias portuguesas. Em que consistiam essas actividades subversivas?
Bom, as actividades eram muitas. Como nós tínhamos, como disse anteriormente, 24 horas sobre 24 horas por dia para nos dedicarmos a outras  actividades, e muitos de nós éramos também presidentes das associações de estudantes nas diversas universidades que frequentávamos,  até conseguíamos ser dirigentes das federações das associações. Havia um movimento associativo  enorme e, de facto, muitos de nós orientávamos  as actividades das associações e das federações associativas. Tínhamos um papel muitíssimo importante na reivindicação, nas lutas estudantis, nos protestos, na elaboração de panfletos, nas marchas, enfim. Sabe como é a vida académica, é extremamente agitada e entregavamo-nos sempre com muita coragem, muita determinação nestas actividades de reclamação...
E como era a sua relação com a elite intelectual das colónias, caso de Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, entre outros moçambicanos que mais tarde chegaram à Casa dos Estudantes do Império, como Joaquim Chissano, Sérgio Vieira e Pascoal Mocumbi?
A minha geração é anterior à dos camaradas  Joaquim Chissano, Mocumbi e  Sérgio Vieira. Nós éramos mais velhos e, na verdade, a nossa relação era muito boa. O Dr. Agostinho Neto era médico também, tirou o curso de Medicina e, portanto, a relação era muito fácil. O Dr. Hélder Martins era a mesma coisa. O Raposo Pereira fazia parte da direcção da Casa. Eram todos dessa geração e dávamo-nos muitíssimo bem. Cada um tinha a sua secção conforme a colónia a que pertenciam,  mas havia sempre  debates , encontros, festas, animações e teatro. Havia de facto uma camaradagem muito e muito grande. Os intelectuais têm um papel muito grande em qualquer movimento contestatário. Eles conseguem teorizar e dar uma dinâmica ao movimento revolucionário.
O Governo colonial, através da PIDE, encerrou a Casa dos Estudantes do Império. Consta-nos que teve um papel preponderante para a sua reabertura. Por que razão fecharam?
 É preciso saber por que é criada a Casa dos Estudantes do Império. No orçamento de funcionamento da Casa dos Estudantes do Império estavam inscritas verbas dos orçamentos das respectivas colónias. a colónia de Moçambique tinha no seu orçamento geral uma rubrica de financiamento da Casa dos Estudantes do Império. O mesmo sucedia com Angola e outras colónias. A Casa dos Estudantes funcionava de facto dessas verbas. Evidentemente que o objectivo do governo português era controlar os estudantes universitários,  sem dúvida nenhuma. Eles sabiam perfeitamente que a classe estudantil representava uma elite e seriam os futuros dirigentes das colónias. Portanto, a intenção do governo era controlar e sabíamos que a PIDE estava atenta a todos os nossos movimentos. Nós  conseguíamos publicar panfletos, feitos a stencil, e outros documentos.  promovíamos palestras e debates, mas a Pide tinha conhecimento. Tinham a sua táctica. Houve uma determinada altura em que as coisas começaram a agudizar-se e houve muita gente que teve que sair, por exemplo, o camarada Marcelino dos Santos e muitos outros saíram do país, exactamente, por pressão da PIDE. E então aproveitando uma não aprovação em assembleia-geral das contas apresentadas pela Direcção-Geral  fecharam a Casa dos Estudantes do Império durante 3 a 4 anos. É a minha  geração que entra em negociações com o ministério da Educação e do Ultramar, pois eram estes dois ministros que controlavam a Casa dos Estudantes do Império. Não foi fácil e houve necessidade de se modificarem os estatutos. Passou a chamar-se Casa dos Estudantes do Ultramar. E passou a haver uma direcção única sem secções. Então  sou nomeado presidente da Casa dos Estudantes do Ultramar.
Mas em 1965 volta a ser encerrada...
Não sei exactamente a data, mas foi novamente encerrada e foi criada uma procuradoria dos estudantes, que já não tinha o carácter associativo, e era controlada directamente pelo Governo. Era uma procuradoria que era um departamento do Ministério da Educação. A seguir dá-se o grande êxodo dos estudantes universitários das colónias...
Nessa altura deixa Portugal e segue para Timor-Leste para prosseguir com os seus estudos. Continuou envolvido na luta pela libertação de Moçambique?
Continuei sempre ligado à Casa dos Estudantes do Império, até que depois 1958/9 entro para os hospitais civis de Lisboa como interno. E aquela vida dos hospitais não permitia  tanta participação. Quando a Índia conquista os territórios de Goa a Casa dos Estudantes do Império não se pronuncia contra este abuso, pelo contrário, acha muito bem, porque foi sempre um movimento anti-colonial que presidiu ao pensamento da Casa dos Estudantes do Império e é este um dos motivos do encerramento definitivo da Casa. 
Em 1970 retoma a Moçambique já formado em Medicina, especializado em Cirurgia Geral. Em 1974, já no Governo de Transição, é nomeado director-geral do Hospital Central de Maputo, que era uma unificação do Hospital Miguel Bombarda e Hospital da Universidade. Como foi dirigir a maior unidade sanitária do país numa altura muito conturbada, por conta da saída dos quadros portugueses para a metrópole?
Diz muito bem. Esse período do Governo de Transição e dos primeiros anos da independência foi extremamente conturbado. Deve-se recordar que em 1975 a medicina foi nacionalizada e pouco depois foi publicada a lei da socialização da medicina. O que é isto da socialização da medicina? O governo entendeu que devia encerrar todas as clínicas privadas e hospitais privados e todos os recursos da saúde deviam pertencer ao Estado. O Governo decidiu que a saúde passaria a ser um direito do cidadão e um dever do Estado. Esta foi a decisão que presidiu ao Governo de Transição e ao primeiro governo de Moçambique independente. Isso gerou uma contra revolução terrível. Primeiro com a saída de muitos médicos, enfermeiros e outros técnicos, de modo que se fechou o hospital da universidade porque já não havia médicos, porque a maioria deles (professores) estavam ao serviço da Faculdade de Medicina e foram-se embora. Além disso, aquele hospital era especial. Os hospitais universitários são hospitais especiais. São hospitais de elite. O que é que isto significa? Significa que só são admitidos ao hospital universitário aqueles casos clínicos mais complicados; são admitidos casos que servem de modelo de ensino para os estudantes; são hospitais em que o doente fica mais tempo internado para permitir que os estudantes aprendam; são hospitais especiais em que os doentes são submetidos a exames complementares de diagnóstico para o aluno perceber como é que se faz o diagnóstico. Enfim, há uma série de características clínicas para se entrar nesse hospital. Havia um certo elitismo e isto envolvia também questões raciais, de certo modo. Mas o que é certo é que saíram todos os médicos e o hospital ficou sem pessoal técnico. Então houve necessidade de recolher o que existia e transportar para o Hospital Miguel Bombarda, criando-se o Hospital Central de Lourenço Marques e depois de Maputo, por despacho do primeiro-ministro na altura, o camarada Joaquim Chissano. E eu sou nomeado director desse hospital. Foi uma tarefa muito grande fazer essa transformação e gestão. Se hoje o Hospital Central tem 250 médicos,    na altura tínhamos 30 a 40 médicos.
Esta unificação do Hospital Miguel Bombarda e do Hospital da Universidade fez do Hospital Central de Maputo uma unidade estratégica aliada ao contexto da nacionalização dos serviços da saúde...
Passou a ser hospital Central, de referência nacional não só assistencial como universitária. Passou também a ser o hospital que ensinava os estudantes de Medicina e essa tornou-se na grande dificuldade, aliada à resolução dos problemas assistenciais. Havia que cumprir a orientação de que  a saúde era  um direito do cidadão e um dever do Estado!  Infelizmente, o grande peso caiu,  pelo menos, na cidade do Maputo, no Hospital Central.
Com a nacionalização da saúde, a mesma torna-se um direito do cidadão e um dever do Estado, juntamente com a criação dos serviços nacionais de saúde, o que é que isto significou em termos de qualidade de atendimento à população?
Isto é um problema delicado. O problema da qualidade sempre se põe em qualquer acto médico. Agora, evidentemente que nós, mais velhos, somos os mentores de exigência em termos de qualidade e, na verdade, devo-lhe dizer que os serviços de saúde tinham muita qualidade. Os médicos que ficaram no país depois da independência eram extremamente dedicados, não tinham horas, não respeitavam horários e mesmo os estudantes de Medicina dos últimos anos compartilhavam inteiramente nos serviços de urgência do Hospital. Foi um movimento de solidariedade e de entrega extraordinário. Foram momentos da minha vida dos mais agradáveis que passei, embora tivesse de trabalhar de três em três dias à noite, e ter que operar. Mas foi o espírito de solidariedade, de disponibilidade de cada um que permitiu manter não só o nível assistencial como a qualidade dos serviços prestados. Nessa altura, não há dúvida nenhuma que as coisas melhoraram muito. Também não havia clínica privada, e todos concentravam-se no Hospital Central.
Volvidos 37 anos após a independência, como é que olha para o serviço nacional de saúde?
Essa é uma pergunta extremamente delicada de se responder. A socialização da Medicina começou em 1975/6 e depois é reintroduzida a medicina privada em 1989, e é interessante verificar o seguinte: as pessoas não compreenderam que de facto estavam a usufruir dum benefício muito grande, que era uma assistência de qualidade, gratuita, igualitária (...) e é a própria população, em 1989, que exigi a medicina privada. Portanto, são petições que são feitas à Assembleia da República exigindo um atendimento personalizado; um atendimento sempre com o mesmo médico, quer dizer, a relação médico-paciente passou a ser outra exigência.
E isso garantiu maior qualidade dos serviços?
Não é maior qualidade. Qualidade não está relacionada com o atendimento cuidadoso. A qualidade é outra coisa muito diferente. Agora, o que as pessoas exigem é que, primeiro, sejam atendidas sempre pelo mesmo médico; segundo, que esse atendimento seja uma amizade. Evidentemente que depois tenha alguma qualidade. Agora, nós não conseguimos juntar todos estes três factores. A medicina privada junta o atendimento personalizado; o atendimento mais simpático, mais humano; cuidados hoteleiros muito melhores; nunca há falta de medicamentos, enfim. São aquelas pequenas nuances que de facto fazem a uma medicina aceite pela população. Quanto à qualidade, isso é completamente diferente.
Os primeiros anos da independência coincidem com uma guerra que se prolonga por 16 anos, deixando um saldo de 1 milhão de mortos e perto de 4 milhões de refugiados. Como era a resposta do SNS nessa altura?
É importante saber que apesar de todos os problemas tivemos, conseguimos crescer. O PIB cresceu; a população estava mais satisfeita; havia mais aceitação; havia mais solidariedade, isto é muito importante, mas, de facto, a guerra de desestabilização rebentou com o país e há pouca gente que passados estes anos se pode aperceber o que foi a tragédia da guerra de desestabilização. Como referiu, um milhão de mortos, mas não foi só isso. Foi a destruição total das nossas infra-estruturas, fábricas, sobretudo estradas, meios de transporte, hospitais rurais destruídos, centros de saúde e maternidades destruídos, enfermeiros mortos. Foi uma guerra implacável, de destruição. Por isso, o Presidente Samora dizia sempre: “esta guerra é feita por bandidos armados”, pelo método de combate, pelos objectivos de destruição, que de facto se apelidou por guerra de desestabilização.
No auge dessa guerra ocupou a pasta de vice-ministro da Saúde e depois de ministro da Saúde
Durante o meu reinado com ministro e vice-ministro da Saúde toda a nossa actividade era dominada pela guerra de desestabilização. Nós éramos como bombeiros que andavam a apagar fogos onde eles surgiam. Os problemas que surgiam eram por causa dessa guerra de desestabilização. Não conseguíamos estabelecer um programa fundamental, por exemplo. O Ministério assenta os seus programas lá na periferia. Programas de saúde pública; programas de vacinações; programas de abastecimento de água, com abertura de poços; programas de saúde materna-infantil, com apoio das mães e das crianças; programas de saneamento do meio; programas de educação sanitária (...). portanto, todos esses programas periféricos, que eram a nossa sustentabilidade, a gente não conseguia fazer.
Era inevitável que esta guerra fosse prolongada ou o governo tinha como torná-la mais curta?
Nunca pensei nisso. Mas quando se verificou que a destruição era demasiada, que economicamente o país estava a tornar-se inviável, quando se verificou que tínhamos grandes dificuldades em produzir e exportar, quando se verificou que as nossas fábricas estavam fechadas, que as nossas estradas não funcionavam, os caminhos-de-ferro não funcionavam, o país começou a paralisar-se e foi nessa altura, não havia outra solução. E esse foi o objectivo principal da guerra de desestabilização. Aqueles que patrocinavam a guerra de desestabilização apostaram dizendo que o governo vai cair de joelhos e então vai-se render. Na verdade, a destruição foi de tal ordem que depois esqueceu-se de dizer que 4 milhões de pessoas refugiaram-se nos países vizinhos. A economia, a agricultura, ficou tudo paralisado. Não era possível pôr a funcionar um país desta forma. A solução foi iniciar as negociações de paz (...). mudámos, transformámos a economia em economia de mercado; fizemos uma sociedade multipartidária.
Fernando Vaz foi médico-assistente do presidente Samora Machel, um homem forte, aparentemente saudável. Como era Samora Machel na relação médico-paciente?
Bom, eu não sei se sabe que o Presidente foi enfermeiro no Hospital Miguel Bombarda e sempre teve uma óptima relação com os médicos. Era uma relação  profissional. Samora respeitava muito a profissão; respeitava muito a qualidade e respeitava muito a saúde dos seus doentes. E esses aspectos sensíveis na personalidade de Samora levaram a que o Presidente tivesse sempre um carinho especial pela saúde e tivesse um carinho pelos programas do Ministério da Saúde. Portanto, evidentemente, eu fui cirurgião do Hospital Miguel Bombarda desde 1970 até 1974. Ouvia falar muito de Samora. Ele convidou-me a ir a Dar-es-salaam, onde nos conhecemos melhor. Conversámos muito e ele tinha uma relação muito íntima comigo. Desenvolvemos uma relação não só por eu ser médico, mas sobretudo por conhecer toda aquela orgânica do Hospital Miguel Bombarda e, sobretudo, por querer participar na reconstrução do novo país. Este é que foi o grande motivo que nos levou a aderir a toda esta acção movida pela Frelimo, na altura.
Acompanhou de perto o acidente de Mbuzini. Partilha da tese de que o avião foi abatido pelo regime do apartheid?
Infelizmente, eu acompanhei de perto, muito de perto todo este problema do acidente de Mbuzini.  O Presidente estava para chegar no dia 19 à noite, cerca das 19h00, mas não chegou. Estávamos todos no aeroporto e, na verdade, a primeira reacção foi de espanto, dúvida e interrogação, porque não tínhamos nenhuma informação concreta da rota do avião. O avião entrou em contacto com o Aeroporto como toda a gente já sabe, está escrito em montes de livros, jornais. O controlador do tráfego aéreo entrou em contacto com o avião e dizia que em quatro ou cinco minutos iam aterrar, mas não se sabia qual era a rota do avião. Esta foi a primeira tragédia. Ficámos toda a noite à espera duma  informação e só às cinco da manhã  temos a informação de que o avião tinha caído ali perto em Mbuzini, perto da fronteira, quando nós pensávamos que o avião tinha caído na Baía da Manhiça. . Depois  sou indicado para ir ver os companheiros que se salvaram  e estavam internados na África do Sul.  Tive primeiro que ir ao hospital de Nelspruit e depois então fomos ao sítio onde tinha caído o avião. Agora, quanto à sua pergunta, bom, essa é a grande dúvida, que tem motivado muitas opiniões, muitas publicações de livros, e com grandes pontos de discórdia. Evidentemente que temos muitas dúvidas em aceitar que foi falha humana.
Esteve na identificação do corpo de Samora em Mbuzini. Com que impressão ficou do acidente?
Quero dizer-lhe que esse espectáculo foi o pior que assisti na minha vida. Já assisti a muitos, infelizmente, na minha vida de médico. Com a guerra de desestabilização assisti a muitos e muitos crimes colectivos, desde desastre de Inhagónia às mortes que me chegavam no hospital vítimas de assassinatos, enfim, é indiscritível. Mas este desastre de Mbuzini foi das coisas mais chocantes da minha vida. Ali morreram uma série de amigos íntimos, a começar pelo Presidente, fora os ministros todos que estavam no avião. Agora, com que impressão fiquei, posso afirmar, categoricamente, que o Presidente faleceu imediatamente ao acidente. Teve um traumatismo grave, crânio-encefálico torácico, que deve ter levado à morte imediata.
Negociou na altura com o governo sul-africano para que a autópsia do corpo de Samora acontecesse em Moçambique. Entretanto, identificou-se no local que tanto o corpo do Presidente Samora Machel, quanto de outros quadros tinham cortes ou golpes no pescoço. O que isso suscitou na altura?
Bom, primeiro, entrámos em negociações com o governo sul-africano. Isso é verdade. Quando acontece um acidente com mortes num país estrangeiro, a responsabilidade, sempre, na identificação da causa de morte é do país onde a morte deu-se. Portanto, os nossos compatriotas morreram em território sul-africano e era da responsabilidade do governo sul-africano a identificação das causas de morte e só depois é que poderíamos transladar os corpos para Moçambique. Então eu sabia dessa lei e informei o Senhor ministro da Segurança, que era o camarada Sérgio Vieira, e fomos discutir com o ministro dos Negócios Estrangeiros da África do Sul que estava no terreno, no sítio do acidente, Peter Botha, a possibilidade de transferirmos pelo menos algumas das individualidades mais importantes e marcantes do nosso governo para Maputo e depois nos comprometeríamos a não tocar nos corpos enquanto não vier uma equipa de anatomopatogistas sul-africanos, para conjuntamente com connosco fazerem as autópsias. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Peter Botha, aceitou. E é então nessa altura que nós, já no fim da tarde, transportámos o corpo do Presidente e de alguns ministros num helicóptero e aterrámos em Maputo (...) . Esperámos pela equipa sul-africana de anatomopatogistas e fizemos as autópsias. Eu era o chefe da missão moçambicana e, conjuntamente, com a equipa sul-africana fizemos autópsia do Presidente e mais três ou quatro membros do Governo importantes. Agora, quanto a esses golpes de que fala, não sei como é que tem essa informação, essa é uma informação um pouco delicada. Na verdade, verificámos isso. Foi em três ou quatro corpos. lembro-me que foi num dos corpos do médico cubano; também houve uns cortes nos elementos da tripulação, não só os soviéticos como também na tripulação de bordo. Mas esse golpes tinham sido executados nos corpos enquanto cadáveres, possivelmente para colher sangue para análise de álcool e de outros produtos que possam existir. É verdade que isso motivou um certo protesto de algumas embaixadas, nomeadamente a Embaixada de Cuba, mas que nós explicámos que isso tinha sido feito depois de morte e ficou registado nos relatórios de autópsia. Como sabe, esses relatórios estão na posse da nossa segurança e da África do Sul.
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