quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Há deformação da história do país - Sergio Vieira

  
- Nos últimos tempos temos ouvido, nós os jovens, versões da história que nos remetem à dúvida daquilo que é real­mente a verdadeira história de libertação de Moçambique. Sendo um dos actores dessa mesma história, como é que reage a isto?
Posso reagir na base da experiência e, como sabe, quando há um acidente de viação e há 10 pessoas que viram, é muito provável que venha ouvir 10 versões sobre o mesmo aciden­te, porque cada espectador tem a sua própria apreciação sobre aquele mesmo acidente, porque cada espectador, cada participante, tem a sua própria apreciação da história. Há aquilo que poderei chamar de deformações de boa-fé, depois há versões e deformações de má -fé. Eu tenho ouvido versões e deformações de má-fé que obedecem a intentos determinados. Eu digo que a história é feita por historiadores e investigadores e cada um traz uma parte da verdade, as próprias testemunhas trazem outra parte da verdade.
- Colocamos-lhe esta questão porque, ainda há bem pouco tempo, entrevis­támos o general Jacinto Veloso, e este dizia que não sabia se Uria Simango era reaccionário ou não. Tendo aprendido na escola que Simango era reaccionário, confunde-nos agora ouvir das mesmas pessoas que, afinal, as coisas não eram como nos disseram...
-Não ouvi e nem li a entrevista, de modo que não me pronuncio sobre uma entrevista que não vi nem li, pronuncio-me apenas sobre o que me está a dizer. Parece-me estranha essa declaração. Houve envolvimento directo de Simango no assassinato de Mondlane; houve envolvimento directo de Simango, mais que provado, nos eventos de 7 de Setembro. Não foi ele sozinho que foi à Rodésia, à África do Sul, pedir uma intervenção das forças armadas da Rodésia e da África do Sul em Moçambique.
Se isso não são crimes de alta traição, é porque na verdade no mundo não existem crimes de alta traição.
- Quando são os actores do processo a virem agora duvidar de alguns pressu­postos dos quais eles próprios fizeram parte, o que é que nós vamos pensar?
- Verificar os factos e dizer, olhe, você enganou-se. Existe o registo da rádio do 7 de Setembro, existem os diálogos da comunicação social. Eu acompanhei de perto; eles participaram no 7 de Setembro, foram à Rodésia e à África do Sul pedir a intervenção das forças armadas, mas que recusaram por razões muito eviden­tes, então, não houve intervenção militar em Moçambique.
-E isto justificou a execução destas fi­guras, que pagassem pelas suas vidas os seus erros?
- Completamente. Ir pedir a invasão do teu próprio país... faz favor! Quando Laval foi executado na França; quando o Marchal Caetano, grande herói da primeira guerra mundial, foi condenado à prisão perpétua, não foi por coisas menores!
- Recentemente, o jornal "Canal de Moçambique" veiculou num documento que depois da execução dos ditos reac­cionários, ficou decidido que se nomeasse um comité para preparar uma comuni­cação pública da execução destes. Esse documento iria ser assinado por Jacinto Veloso e a tal comissão integrava várias pessoas, de entre as quais o coronel Sérgio Vieira. Chegou a ser feita essa comunicação?
-  O que posso dizer é que eu fui designado, quando eles foram presos. Eu dirigi uma comis­são de inquérito que continuou o trabalho com dois objectivos principais: o esclarecimento sobre o assassinato do presidente Eduardo Mondlane e as questões relativas ao 7 de Setem­bro. O relatório foi entregue ao órgão próprio, que era a comissão político-rnilitar, e sobre isso o presidente Joaquim Chissano, na Assembleia da República, até fez uma declaração pública, há uns anos, já não me lembro quando.
- Quem foi que executou estes ditos reaccionários?
- É difícil responder sobre quem faz parte do pelotão de fuzilamento, porque o pelotão de fuzilamento, falo com experiência própria é uma secção composta por 12 homens, aos quais seis levam balas verdadeiras e outros seis levam balas não verdadeiras, mas que fazem mesmo barulho.
- Referimo-nos à execução em si, senhor Sérgio Vieira é que dirigiu esse processo?
-Eu fiz a instrução.
- E quem mais tarde dirigiu o processo de execução?
- A comissão político-militar decidiu. Não sei quem deu ordens. Nunca me transmitiram.
- Sobre a execução, os dados são contraditórios. Como e onde é que ocorreu?
- Eu não tenho dados contraditórios ou não contraditórios. O que eu tenho é que entreguei o relatório e a partir daí não tive nada a ver com o assunto. Nem nunca fui informado directa ou indirectamente sobre a matéria Porque também não tinha nada que ser informado directa ou indirectamente sobre matéria.

COM A MORTE DE SAMORA MACHEL. VIRAGEM!

- Jorge Rebelo deu uma entre­vista recentemente ao jornal Sa­vana e disse que quando Samora morreu, o nosso comportamento mudou. O que estava em nós re­primido veio à superfície. Na sua opinião, a morte de Samora pôs fim, de facto, a uma era e marcou o princípio de outra?
-  Posso dizer que sim, posso dizer que não. Um dirigente máximo marca sempre as pessoas com quem está. De alguma maneira, também influencia nos comportamentos. Eu lembro-me do meu amigo, o arquitecto José Forjaz, ter dito que abandonámos um sistema bom com erros, para um sistema errado com algumas coisas boas. Bom, posso também dizer que quem paga a orquestra determina também a música. Houve uma vi­ragem que ocorreu na organização económica do país que facilitou o surgimento de fenómenos negativos, nomeadamente, a corrupção, o açambarcamento de bens do Estado, etc.

-   A questão é que a Frelimo ensinou os seus quadros a não usarem as suas influências para tirarem vantagens pessoais e agora parece ter-se esquecido desses seus ideais...
-     Até dizíamos, e para mim ainda continua, ser um princípio funda­mental: primeiro no sacrifício e último no benefício.
-   Mas as coisas parecem ser exactamente ao contrário...
-  Desde quando os humanos deixa­ram de ser humanos? Os humanos sempre foram humanos, têm os seus apetites e certos condicionamentos. Esses apetites são refreados e são reorientados. Nestas circunstâncias, o burro é que rebenta a corda.
-  Uma das questões que, recor­rentemente, algumas pessoas levantam é que "se Samora estivesse vivo, isto não teria acontecido". Concorda?
-   Há uma coisa que eu sei. Samora Machel não era um homem de querer bens. Era um homem completamen­te desinteressado, desse ponto de vista.
-  E acha que as pessoas que o ro­deavam também eram assim?
-   Creio que dois meses antes de Samora morrer, tive uma cópia de um relatório dos embaixadores da União Europeia em que diziam que é muito difícil fazer certas coisas em Moçambique, que o governo de Moçambique era incorruptível. Espe­ro ter respondido à tua pergunta.
-  Acha que isso seria possível dizer-se actualmente?
-   Creio que não!
-  Nessa mesma entrevista, Jorge Rebelo disse que não sabia qual era a ideologia que a Frelimo estava a seguir agora. Ainda faz sentido falar de socialismo democrático nos dias de hoje, como foi no passado?
-   Penso que sim, e como marxista que sou...
-  Continua marxista?
- Absolutamente! Porque os princí­pios de economia política, os prin­cípios do materialismo político, do materialismo dialéctico, ainda não foram ultrapassados como instru­mentos científicos. Não estou a falar como Bíblia. Há alguns pontos em que nós todos errámos. Irei começar pelo próprio Lenine, que foi o salto de uma sociedade pré-capitalista para uma sociedade avançada como era o socialismo, sem a criação prévia de toda uma série de camadas médias que são indispensáveis. Esse erro ocorreu. De alguma maneira, os ca­maradas chineses, vietnamitas estão a corrigir isto, estão a tentar estabelecer as camadas médias que permitem que depois se possa estabelecer os proces­sos. Marx dizia que não se passa de um modo de produção para o outro por mera boa vontade. Cada era de produção tem que se esgotar para se passar para a etapa seguinte.
-  O que nos surpreende é que aquelas figuras que serviam de valores, viraram predadores...
- Estás a falar de muita gente ao mes­mo tempo. Diz "algumas das figuras", não sei quais são essas figuras que viraram ou não. Não é verdade, não são todas as figuras.
-Está a dizer que não se sente parte dessas figuras?
- Dos predadores?
-Sim.
-           Vai ver as minhas contas bancárias. Estou disposto a pôr isso em público, (risos...).
Não há alas na Frelimo
- Jorge Rebelo dizia também que é inegável que haja grupos dentro da Frelimo. Jacinto Veloso tam­bém se referiu a esta questão no seu livro. Partilha desta ideia?
- Eu digo que há pontos de vista dife­rentes entre pessoas e talvez a mesma pessoa possa mudar de posição nesta ou naquela questão. Eu diria que a Frelimo é uma família constituída há mais de 40 anos. É normal que nesta família haja pontos de vista diferentes, mas ainda existe boa vontade de man­ter esta família unida.
- Mas sente que há grupos locali­zados com esta e aquela visão?
-  Creio que é exagerada essa afir­mação.
-  Não concorda que haja alas dentro da Frelimo...
-Não!
-Jacinto Veloso diria que a maior oposição neste país está dentro na própria Frelimo...
- Eu direi que dentro da Frelimo há sempre uma discussão forte, e não é de hoje, mas esta discussão é uma dialéctica da vida.
5 de Fevereiro" foi orquestrado
- Que avaliação faz do aconteci­mento de 5 de Fevereiro deste ano?
- Bom, o 5 de Fevereiro deveu-se, por um lado, a uma acumulação de erros e, por outro, a uma exploração da si­tuação. Acumulação de erros, porque foi no mês de Janeiro, acabávamos de sair das festas e nas festas as pessoas gastam muito dinheiro, à espera do 13o vencimento. E logo a seguir, é preciso comprar sapatilhas novas para as crianças, livros, etc E na série de despesas, naquele momento, e, de repente, sobe o preço do combustível e, consequentemente, o do trans­porte semi-urbano aumenta em 50 por cento. 7.50 Mt durante 22 dias representa quase metade do salário. Toda a gente ficou perturbada.
- Acontece que eu estava, nesse dia 5 de Fevereiro, em Maputo, e o escri­tório que tenho aqui em Maputo está no nono andar. De repente, vejo na praça da OMM, da Av. de Angola até à Rua da Resistência, um grupo de 20 a 30 crianças e cerca de dois terços de adultos com paus. Chegavam a uma montra e partiam, diante de um caro e partiam os vidros - isto não foi a população, os assaltos a lojas não têm nada a ver com o custo de vida. Combinar que no dia X vamos fechar todos os acessos à capital, isto é uma operação organizada. Tu não fechas o acesso a uma capital sem o mínimo de organização.
- Mas onde é que estava a Inteligência do Estado?
- Não esteve.
-Por que não esteve?
-Porque toda a gente foi apanhada de surpresa, de alguma maneira.
- Incluindo a Inteligência do Estado?
- De alguma maneira.
- No seu tempo, seriam capazes de serem apanhados de surpresa com um evento desta enverga­dura?
- Posso dizer que nunca fui apanhado de surpresa com um evento desta en­vergadura. É o que posso dizer. Agora, se seria ou não, estou a especular.
- Mas isto não será consequência de uma distribuição desigual e não inclusiva da renda no nosso país?
-  Obviamente que a nossa sociedade tem uma grande disparidade de gente teoricamente influente, digo teorica­mente, porque existe um fosso entre os que têm e os que não têm alguma coisa, e isto, evidentemente, é um factor que contribui para a instabilidade social.

O País  - Maputo 15 Agosto 2008 pp 2-5