quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Jorge Rebelo, uma entrevista


Por Luis Patraquim
“Velho mundo que és percorrido/A galope pelo cavalo/Branco e negro do dia e da noite,/És o triste palácio aonde//Cem Djemehids sonhando de glória,/Cem Bahrams sonhando de amor/Estiveram adormecidos/E despertaram soluçando.” Omar Khayyam, “Rubaiyat”, tradução de Manuel Bandeira a partir das versões francesas de Franz Toussaint.
Na morte de António Quadros, o Mutimáti Frei Grabato, José Craveirinha publicou, no “JL”, um epigrabático poema sobre o discreto homem dos limões que à sua casa chegava, ofertando-os, à entrada do portão, na Rua Fernandes Farinha, em Maputo. Refiro esta só aparentemente desconexa evocação porque a entrevista de Jorge Rebelo ao “Notícias” teve sobre mim um efeito de ocupação e sobreaquecimento da memória, quadrícula e dispersão guerrilheira, num palco amplo que a todos nos implica.
Os da “geração da revolta”, como refere o antigo Ministro da Informação. E se me ocorreu lembrar limões, em respeitosa e mediterrânica pose trocados, é porque quero confessar os assaltos ao quintal de uma certa casa, ali onde começava a Estrada de Lidemburgo, depois da garagem dos Wilson, com um belo limoeiro mesmo junto ao muro. Sumarentos os gomos, carnuda a casca verde-lima, ingredientes para o achar improvisado nas tardes de pé descalço e bola de trapos depois do jogo na segunda travessa. Só muitos anos mais tarde soube que, nos anos já longínquos da infância – Helas! – , a senhora que às vezes nos enxotava da janela era familiar do camarada Ministro com quem nos reuníamos no antigo Ministério da Informação.
Para que serve lembrar isto? Que relação com o conteúdo da desassombrada entrevista ao jornal?
Julgo encontrar algumas razões. Mas antes de as formular, apraz-me poder afirmar que tenho por Jorge Rebelo um respeito que, embora crítico, não gostaria que passasse em claro. Nas vicissitudes e no desvario neo-liberal, revisionista, amnésico e tudo, do pós-samorismo, as suas intervenções públicas trouxeram sempre a marca de um imperativo ético sobre o sentido da “revolução” que se esvaía, uma exigência de memória a que não será alheia a condição de discreto poeta que também é, um posicionamento ideológico que, evoluindo, nunca traiu os valores em que acreditava. Tudo isto e mais o não despiciendo pormenor de poder intervir, alcandorado numa autoridade moral e cívica incorruptíveis. Mas falemos de limões e na sua metaforização. Leio as declarações de Jorge Rebelo e não posso deixar de concordar com ele quando afirma que havia censura.
Era para defender a revolução, acrescenta; para unir o povo, e que tudo isso deve ser analisado num “determinado espaço e contexto histórico”. Consequência desse controlo ideológico, o exacerbamento de alguns a quererem ser mais papistas do que o papa. Depois, dá o exemplo de Carlos Cardoso e refere as mil contingências da “liberdade” de agora, desde os conteúdos que não chegam aos destinatários – o povo - , ao profissionalismo e à competência que devem presidir à profissão, sempre na defesa do interesse nacional.
É difícil não concordar com quase tudo, excepto os limões de que se não fala. Dando de barato o que agora percebe como uma quase evidência, os famosos “checks and balances” da tradição anglo-saxónica, mesmo que tossindo só ao de leve ante a defesa, em conjuntura histórica, do Partido único, a verdade é que as declarações de Jorge Rebelo sabem a percurso de solidão. E não dele, a pessoa que se expressa, mas de todo o processo, como então se dizia.
Socorro-me de um título famoso e que é uma biografia intelectual do México: “O Labirinto da Solidão”, de Octávio Paz.
Sem querer fazer revisão da História, julgo que a inevitabilidade do Partido único poderá não ser assim tão evidente. Bastava que a FRELIMO tivesse continuado como Frente de Libertação, aglutinando ou percebendo ou simplesmente suscitando o mais diverso tipo de enquadramentos e modos de expressão para riquíssima diversidade cultural, ideológica também, que no país se queria exprimir. O Partido único foi um desenho formal de uma construção ideológico-intelectual para moldar a realidade aos conceitos propugnados.
Na complexa diversidade de que a luta de libertação foi feita, houve uma espécie de esquecimento estratégico, assim assumido por total recusa das correspondências, das osmoses, das trocas, da sedimentação cultural que se vivia. Ao maniqueísmo da pura lógica colonial sucedeu outro, com generosidades e iras, com messianismos de época e decisões entre o óptimo e o desastroso. Pouca ou nenhuma porosa membrana foi deixada para que as águas se misturassem.
Descendo do norte, “com toda a sua força virada para o sul”, muitos dos protagonistas e dirigentes da FRELIMO recusaram, atrevo-me a dizê-lo, o que era uma parte de si, a anterior, a que saboreava os limões. Decorrente disso, veio a fronteira hostil entre os que, “homens novos”, chegavam das zonas libertadas, e os outros, no suspeitoso espaço urbano devorando-se em vício.
Foi este auto-imposto ”labirinto da solidão”, vivido como uma ascese de eleitos, dos que tinham visto a luz, que voltou a pôr a “granada” que deflagrou no meio de nós, para parafrasear Rui Knopfli. O tempo era de uma narrativa de sentido único e essa tentação ainda está bem marcada no sub-texto das declarações de Jorge Rebelo.
O percurso vem sendo longo e doloroso. Há um país ex-cêntrico, no rigor etimológico do termo, o país que começa “a dez quilómetros de Maputo”, para citar o entrevistado. Há exílios e derivas. E há, felizmente, uma pluralidade de narrativas que se começam a exprimir. Entrecruzá-las é sair do labirinto, é deixar o lugar mais ou menos ensimesmado, reflectido embora, da solidão que ainda nos tolhe. E saborear os limões.
SAVANA - 21.04.2006