terça-feira, 4 de setembro de 2012

Moçambique, terra queimada (iii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Fortaleza de S. Sebastião (Moçambique)

Entre Banda e Salazar

O Doutor Salazar, a quem eu ia informando do andamento das coisas, mostrava uma curiosidade interessada pelos inesperados resultados que se iam verificando. Disso vieram a ser testemunhas, entre outros, o Dr. Corrêa de Oliveira e o Dr. Paulo Rodrigues que me assinalavam a tolerância com que o Presidente do Conselho se referia aos meus procedimentos que o intrigavam mas em que sempre confiava.

Creio que, na verdade, beneficiei de uma liberdade de movimentos de que poucos terão auferido, sendo certo que o Doutor Salazar tinha predilecção especial por deixar canais diversos seguirem caminhos diferentes por forma a, na altura das decisões, poder usar a opção que julgasse mais conveniente para o interesse nacional. É assim que os homens de Estado devem governar tendo em conta, como numerosas vezes me disse, que "os países têm interesses, não podem ter paixões."

Numa notável carta manuscrita (contendo longas nove folhas) que me escreveu em 26 de Julho de 1964, logo a seguir aos meus primeiros relatórios e depois da independência do Malawi, mostrava a melhor compreensão pelos novos caminhos em que íamos seguindo, ao escrever:

"Creio que temos procedido de forma a permitir ao Dr. Banda uma atitude correcta e até amigável para connosco, sem se comprometer. Penso que ele não pode fazer outra política diferente da da boa vizinhança e alguns recortes da imprensa, não só do Timesdo Malawi mas de outros países africanos, dão-me a impressão de ser compreendida essa política, pela impossibilidade material de fazer outra e pelas vantagens imediatas e certas que esta trará à antiga Niassalândia. É natural que o Dr. Banda tenha dificuldades a vencer junto dos outros países africanos que verão com muito mau modo a sua aproximação com Portugal. Talvez eles se contentem com algumas afirmações demagógicas e anticolonialistas. Esta política tem, pois, as suas dificuldades, mesmo para nós que temos de deixar passar muita coisa; é, porém, a que deve fazer-se de um e outro lado."

Pouco depois, em carta de 17 de Agosto, acrescentava:

Na imagem: mesquitas (Cairo)

"Quanto ao consulado do Malawi na Beira e à designação da pessoa que devia encarregar-se do mesmo, tudo se fez para que não se perdesse tempo. As ausências do Dr. Banda, primeiro em Londres na conferência da Comunidade Britânica, e depois no Cairo, pareceu-me contra indicarem uma carta que levaria bastante tempo a ser-lhe entregue. Por isso se telegrafou sem demora, na suposição de que os serviços pretendessem dar andamento ao caso. Por outro lado, o assunto devia passar exclusivamente pelas Necessidades. Em todo o caso posso responder agora ao Dr. Banda a dar-lhe conta do que se fez e de como se fez. Se espera uma resposta, esta dar-lhe-á algum prazer. Os jornais noticiaram a nomeação do cônsul e é bem que, de mistura com as suas muitas ocupações, ache um pouco de tempo para estes assuntos do Malawi e do nosso Moçambique."

Seguindo uma política de realismo, comentava os meus propósitos de tentar o contacto com a Zâmbia (que viria a ser dependente em Outubro desse ano) escrevendo:

"Sem relações diplomáticas ou consulares, tratar os assuntos que têm de ser tratados vai ser muito difícil e não deixa aberta senão a via pessoal a que me referi acima. A nossa política geral para com os três territórios que constituíam a Federação continuará a ser a mesma, se for possível executá-la. Como soberanos nos territórios costeiros, sentimo-nos obrigados a dar as facilidades possíveis aos territórios do interior. Ponha em jogo a sua imaginação e relações pessoais a ver o que consegue fazer."

Concordava, ainda, com a minha deslocação ao Ghana (que o Dr. Banda me recomendara) e com a visita a Madagáscar (preparada por amigos franceses) apenas recomendando com amizade:

"Não deve ir, correndo riscos; será muito bom que possa ir, se em segurança."

Na verdade, estas minhas múltiplas deslocações, a territórios havidos como suspeitos, deixavam-no em sobressalto até porque conhecia as condições rocambulescas em que, depois da invasão de Dadrá, eu me escapara de Bombaim ludibriando a polícia indiana que cercou reunião clandestina da "resistência goesa" a que me atrevera a presidir. Mas isso são outros contos que ficam para próxima oportunidade.

O que interessa registar é que a acusação de imobilismo não corresponde à verdade. Pelo menos consentiu-me apreciável mobilidade, não desperdiçava oportunidades e quase me encorajava a explorá-las. Muito mais longe ainda foi como adiante revelarei.