terça-feira, 4 de setembro de 2012

Moçambique, terra queimada (iii)

(...) Peking ou Moscovo
Quando iniciei a minha actividade no Malawi, eu dispunha do melhor ambiente no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, instalado no Palácio das Necessidades e por isso conhecido com tal designação.

O Dr. Alberto Franco Nogueira (que tão injustamente veio a ser tratado por Marcello Caetano e tão dramaticamente perseguido depois do "25 de Abril") foi uma das grandes conquistas pessoais do Presidente Salazar. A sua formação liberal, bem vincada nos tempos académicos, tinha sido seguida por uma actividade cultural que nitidamente a evidenciava. Quando vejo classificá-lo de "fascista" não posso deixar de medir a pobreza mental de quem o faça.

O que aconteceu é que começando por exemplar, com probidade profissional, a política externa do governo, acabou por a conduzir convictamente na defesa intransigente e mesmo dura da integridade do Ultramar considerada no conjunto da Pátria Portuguesa.

Trabalhámos juntos e sabia que não poderia contar com a sua adesão para a política de realismo que eu viria a advogar. Por isso nunca lhe apresentei essa opção. Respeitava-o na sua sinceridade honesta e não desejava afectar a nossa amizade.

Poderia discordar-se de Franco Nogueira (e eu discordei) nalguns aspectos da sua actuação, mas parece-me indigno que portugueses viessem a encarcerá-lo pela convicta defesa da sua patriótica posição.

Na imagem: Franco Nogueira

Diplomata de alto nível bateu-se com intransigência pelos quadros da carreira profissional, cometendo talvez o erro de avaliar os outros por si próprio. Introduziu reformas no Ministério que na sua objectividade estrutural conduziram, no dizer de colegas seus, a instaurar o predomínio da mediocridade. Por outro lado, opunha-se ao ingresso na diplomacia pela via política e com tal orientação, terá travado uma valorização competitiva estimulante. A carreira, efectivamente, fora anteriormente enriquecida pela aquisição de homens como Pedro Theotónio Pereira, José Nosolini, Carneiro Pacheco, Duque de Palmela, Gen. Venâncio Deslandes e Luiz Pinto Coelho, para só citar os que melhor recordo.

Nas Necessidades coincidia, efectivamente, a mediocridade arranjista de muitos (que vieram a revelar depois da revolução a mais despudorada falta de carácter) com a valia técnica e intelectual de outros. Homens como Marcelo Matias, Rocheta, Martins de Carvalho, Calvet de Magalhães, Rui Guerra, Hall Themido, Garin Freitas Cruz, Siqueira Freire e, mesmo, Menezes Rosas (para só citar aqueles com quem directamente trabalhei) constituíam um escol digno de todo o apreço. E na camada mais jovem, os nomes de Soares de Oliveira, Pereira Bastos, Cabrita Matias, Lopes da Costa e Fernando Reino (para continuar a mencionar os que melhor conheci) evidenciavam-se com qualidades nem sempre aproveitadas pela melhor forma. Uma referência é, ainda, devida a Pedro Pinto que a revolução veio encontrar como Secretário de Estado da Informação e que compensava a sua total desorganização no trabalho com a imaginação fecunda e dinâmica que dele transbordava.

Em 1964 era director geral dos negócios políticos do Ministério o inesquecível José Manuel Fragoso, de formação liberal mais radicalizada e profissional dos mais distintos que a carreira contava. Actuava como o braço direito de Franco Nogueira, exercendo acção moderadora que a intimidade das relações lhe consentia. Deu-me todo o apoio e estímulo nos meus primeiros passos no Malawi, cujo prosseguimento antevia com clareza.

Chamada urgente a Lisboa

Foi neste ambiente de estreita colaboração, que só mais tarde os medíocres viriam a perturbar, que recebi um telegrama de Franco Nogueira (em Janeiro de 1964) logo seguido por uma comunicação telefónica do governador-geral, Almirante Sarmento Rodrigues, pedindo a minha urgente presença em Lisboa.

Estranhei os termos prementes da convocação quando se sabia que eu estava, nessa altura, tentando embrenhar-me apaixonadamente na missão do Malawi. Não fazia sentido o meu afastamento e receei que nas Necessidades não estivessem ao corrente da importância que o Presidente do Conselho atribuía à tarefa que me confiara.

Refilei com Lisboa, pela via do governo-geral, e a resposta surgiu sem demora pelo mesmo canal em 30 de Janeiro dizendo textualmente: "Favor explicar engenheiro Jardim ser urgente sua vinda Lisboa por desejarmos confiar-lhe missão especial". Pedi para me esclarecerem sobre o tempo que essa missão me reteria e não resisto a reproduzir a bem humorada réplica que me fizeram chegar: "Cinco dias, cinco semanas ou cinco meses".

Claro que, com as coisas postas nestes termos, eu estava em Lisboa na tarde de 4 de Fevereiro.

Franco Nogueira atendeu-me logo no dia imediato e disse-me tratar-se de uma tentativa de estabelecimento de relações com a China Popular. Tinham-me escolhido pela delicadeza da missão que não poderia fracassar, dado tudo quanto nela se jogava. O Presidente do Conselho tinha estado reticente mas dera a sua concordância, tal como aprovara o meu nome.

As sondagens haviam revelado receptividade por parte de Chu-en-Lai que em Conakri concedera uma entrevista a um jornalista americano de total confiança chinesa (Edgard Snow que acompanhara Mao-Tse-Tung na sua "longa marcha") afirmando que a posição anticolonialista não era incompatível com o restabelecimento de relações com Portugal, embora houvesse sublinhado que não tinha conhecimento de qualquer propósito de Lisboa em tal sentido. Essas declarações tinham sido publicadas no dia 3 de Fevereiro e respondiam a artigos aparecidos na imprensa portuguesa ("Voz" e "Diário de Notícias") advogando a aproximação com a China Popular no seguimento de ideias que Franco Nogueria confidenciara, em Madrid, a um correspondente estrangeiro que se apressara em fazê-las circular.

Na imagem: Escudo de Armas (Macau Portuguesa)

Através de Macau dispunhamos de um bom contacto, Ho Yin, que estaria disposto a acompanhar a Cantão (onde mantínhamos um consulado) uma missão comercial portuguesa a que eu presidiria. Em Cantão tudo se organizaria para prosseguirmos até Peking.

Franco Nogueira esclareceu-me de que esta aproximação deveria ser genuína e, desde que iniciada, levada às últimas consequências ou seja o estabelecimento de relações oficiosas que desembocariam, a curto prazo, em relações diplomáticas.

A China Popular teria interesse político nisso, pelo que representava a ostensiva libertação da tutela americana por parte de um país, como Portugal, membro da Aliança Atlântica e tradicionalmente anticomunista. Depois do reconhecimento francês (que havia sido duramente atacado na NATO com a única posição favorável da Alemanha e de Portugal) isso traduziria notável vitória para Peking cujas compensações contávamos recolher. Mas era preciso andar-se depressa para não tardarmos entre os países ocidentais que viriam, certamente, a seguir o mesmo caminho.

Em conclusão: a manobra depois de iniciada era irreversível e tinha de ser feita convictamente, com sinceridade.

Para além do meu invocado jeito para lidar com os mais estranhos países, sabia-se da minha simpatia pela China Popular e mesmo de certas posições que tomara em favor da sua ideologia.

Não neguei. Disse que aceitava a missão. e conclui que estavam bem informados. Todo o meu sonho, de há muito, era conhecer directamente a China Popular e tentar compreender o milagre da sua revolução doutrinária num país de milénia cultura e tão vastas proporções humanas.

Preparei-me, afincadamente, para aumentar a minha modesta cultura sobre esse insondável mundo e mandei vir, pelo telefone, todos os livros disponíveis em Paris. Foi daí que me resultou conhecer com apreço crescente, os oito volumes da obra genial de Mao-Tse-Tung.