terça-feira, 4 de setembro de 2012

Moçambique, terra queimada (iv)

Escrito por Jorge Pereira Jardim



Na imagem: Palácio do Kremlin

Jornalistas russos em Moçambique

Durante as festas da independência do Malawi (Julho de 1964) encontrei-me, ocasionalmente, em Blantyre, com o enviado do "Pravda", de Moscovo, Mikhail Domogatskiy e estabelecemos certa convivência. Ajudei-o nas facilidades de que carecia para fazer o seu trabalho. Ficou entre atónito e desconfiado quando lhe disse a minha nacionalidade e, mais ainda, a terra em que vivia.

Voltámos a encontrar-nos e a conversar.

Perguntou-me se se podia visitar Moçambique e eu perguntei-lhe quando desejaria fazê-lo. Desta vez o espanto foi total pois lhe assegurei que o visto seria dado sem dificuldade, mesmo num passaporte soviético.

Inquiriu-me se eu falava a sério e se podia referir isso a Moscovo.

Insisti em que não estava a brincar e quanto a isso de consultar Moscovo era problema que, embora o compreendesse necessário, em nada me dizia respeito. Que o fizesse se tinha de pedir licença.

Conversei o assunto com o Dr. Hall Themido, do Ministério dos Negócios Estrangeiros que se encontrava no Malawi integrado na embaixada portuguesa a que presidia o Almirante Lopes Alves. Achou ousada a minha iniciativa mas deu-me todo o apoio. Também ele iria consultar Lisboa.

Tirei-me dos meus cuidados e telefonei ao Doutor Salazar pedindo-lhe que concordasse pois nada teríamos a perder. Mesmo que se tratasse de um agente soviético perigoso, certamente que não iria fazer contactos em Moçambique para nos fornecer o rasto da sua organização. Não me parecia que fosse obter mais informações do que aquelas que já tinha e podia sempre refrescar pelas vias de informação de que dispunham. Afigurava-se-me que o "Prava" não podia dizer pior do que aquilo que já dizia e que, neste terreno, tinha muito menos credibilidade do que os correspondentes americanos que escreviam, ainda por cima, em caracteres legíveis por toda a gente e em língua acessível a muitos. No aspecto positivo o que ficaria era a imagem de consentirmos a entrada em Moçambique mesmo a jornalistas soviéticos. E se eram outra coisa, além de jornalistas, nada se perdia em estabelecermos contactos.

O Presidente Salazar achou bizarra a ideia e atrevida a minha argumentação, mas o consulado português em Balntyre recebeu ordem para dar os vistos a soviéticos que eu recomendasse.

Passados dias, o meu amigo Domogatskiy deu-me o passaporte dele e o de um companheiro para serem postos os vistos. Ficou siderado quando, curtas horas depois, lhos devolvi já devidamente visados.

Antes de nos separarmos, em Blantyre, ficou de contactar de novo comigo para combinarmos a oportunidade da visita. Nisso me ajudou, e muito, um jornalista moçambicano interessadíssimo nesta "caixa".

O calendário rodou, foram-se trocando mensagens (incluindo abundante propaganda) e, finalmente, acordou-se que chegariam à Beira provenientes de Nairobi, e via Blantyre, dois enviados do "Pravda": o já conhecido Mikhail Domogatskiy e Tomas Kolesnichenko. Permaneceriam em Moçambique de 10 a 17 de Março de 1965.

Combinámos que para lhes facilitar a vida, evitando reacções de animosidade ou simpatia, os apresentaríamos como jornalistas austríacos e para o efeito lhes atribuímos os apelidos convenientes. Assegurámos ainda, que nada divulgaríamos sobre a sua visita antes de abandonarem o território.

Ficaram encantados com a ideia, planeámos a viagem a seu gosto e utilizámos o meu avião para irem onde quisessem deslocar-se.

Foram, aliás, simpatiquíssimos e o a ambiente de camaradagem havia de estreitar-se progressivamente ao longo daquela semana. Nunca me foi mais fácil e agradável, acompanhar jornalistas estrangeiros.

No dia seguinte à chegada, jantaram em minha casa, no Dondo. A família e, sobretudo, os pequenos mais velhos inteirados da real identidade dos visitantes, acolheu-os com hospitalidade fria. Mas pronto nos conquistaram com a exibição de notável e bem planeado malabarismo de propaganda.

Na imagem: Sputnik 1 (satélite espacial russo)

Para além do vodka e caviar que nos ofereceram, deram-me uma medalha comemorativa do lançamento do primeiro "sputnik" e trouxeram bonecas para as pequenas. Depois, num alarde de total domínio de informação, entregaram à minha mulher dois estojos com caixas de fósforos soviéticos (artisticamente coloridas) explicando que as tinham trazido de Moscovo porque sabiam que ela faz colecção!

A partir daí resolvemos que não merecia a pena esconder-lhes nada.

Apreciaram objectivamente o que lhes fomos mostrando e iam tirando fotografias sobretudo quando tinham oportunidade de deparar com exemplares de sub-desenvolvimento humano. Mas valha a verdade que os monumentos, ligados à história das descobertas, os entusiasmavam de igual modo.

Na Ilha de Moçambique, na casa que o Dr. Ferreira dos Santos colocara à disposição dos meus amigos "austríacos", tivemos a primeira conversa a sério. Reconheciam que se estava a fazer um esforço no terreno da educação e que o multi-racialismo se ia tornando realidade autêntica.

Não viam, porém, que possuíssemos estruturas para absorver a produção escolar em médio prazo e nem que tivéssemos recursos para essas estruturas preparar. Daqui resultava a inevitabilidade de produzirmos um proletariado, já sem vínculos tribais, que seria o alicerce da futura revolução.

Admiti que fosse assim, mas comentei que, não podendo inventar os meios, nos restava correr o risco. O que não podíamos era travar a ânsia pelo ensino. A liberdade humana tinha o seu preço e aceitávamo-lo na certeza de que o ciclo se encerraria por forma harmoniosa. A expansão do ensino era factor de progresso indispensável. Os períodos de transição dolorosa custam muito aos que os atravessam, mas contam pouco na projecção histórica das nações.

Ficaram atónitos com esta dialéctica e tomaram apressados apontamentos.

Impressionava-os muito, a presença chinesa que tinham notado na Beira. Viriam a alarmar-se com ela quando passámos por Lourenço Marques.

Por mais que lhes explicasse que era gente pacífica e radicada no território, não havia meio de me acreditarem. Domogatskiy disse-me haver passado oito anos na China (sabendo falar e escrever o chinês) e assegurava-me tratar-se de infiltração política que era preciso travar porque bem sabia como os chineses trabalhavam. Quase que se propôs fazer um curso de esclarecimento para as nossas autoridades policiais.

Depois, na Beira, mostrei-lhes armamento apreendido à "Frelimo" e todo ele de fabrico soviético. Não entendia eu esse apoio de Moscovo quando se sabia que, nessa altura, a "Frelimo" oscilava da órbita americana para a chinesa. Pediram-me fotografias com detalhes do equipamento e vieram a informar-me que se tratava de armas que haviam fornecido à Argélia, durante a sua luta contra os franceses, e que dali haviam sido desviadas para a "Frelimo" sem seu conhecimento ou autorização. Quase que estavam indignados por tal abuso.

Em Lourenço Marques, o meu amigo Domogatskiy pretextou um ataque de paludismo (que chegou a preocupar-me) para não acompanhar Kolesnichenko na visita programada ao colonato do Limpopo. Mas mal a caravana partiu, apareceu, fresco e bem disposto, no meu quarto, porque queria conversar comigo.

Estava, cavalheirescamente, preocupado com a ideia de que, depois de lhes haver dispensado tantas atenções, eu confiasse em que fossem fazer apreciações favoráveis. E isso não lhes era possível.

Tranquilizei-o e comentei que pouco me importava o que escrevessem porque muito mais me interessava o que vissem. Presumia, aliás, que o relatório que entregariam ao Partido seria coisa bem diversa do que o que publicariam no "Pravda".

Riu-se, aliviado, e assegurou-me que assim seria.

Depois referiu-me que não os preocupava a concorrência dos americanos, mas reconhecia que estavam com um atraso de 10 anos sobre os chineses. Trabalhando bem as élites da "Frelimo" poderiam, nesse prazo, ou talvez em pouco menos, recuperar o terreno perdido. Tudo estaria em que a libertação de Moçambique se não desse antes disso porque, então, seria uma fatalidade para a África, incapaz de conter o expansionismo chinês. Desse novo colonialismo nunca mais ninguém se livraria.

Pareceu-me sincero e quase que desejoso de dar uma ajuda para que aguentássemos o tempo de que necessitavam.

Na imagem: figuração da China comunista

Compreendi que a África Austral estava destinada a ser terreno de confrontação entre russos e chineses, sem que os soviéticos se resignassem a perder uma influência em que os outros lhes levavam vantagem. A nós ficava-nos algum tempo para manobrar procurando uma solução independente.

Muito do que se veio a passar, encontra explicação nesta estratégia que Domogatskiy (em 1965) me referiu. A Rússia sabia que se não se antecipasse aos chineses, correndo contra o tempo, poderia perder a cartada para sempre.

Quando a revolução de Abril (em 1974) consentiu aos comunistas que ocupassem o poder e a descolonização de desencaminhou para os rumos conhecidos, compreendi que os soviéticos haviam desencadeado a sua estratégia de antecipação. Tinham trabalhado bem e depressa (em Portugal e em África) recuperando o atraso e estavam ansiosos por não perderem a vantagem.

Isso explica a violenta intervenção em Angola e o que está acontecendo em Moçambique.

Interessa reter este aspecto, para se entender quanto referirei adiante.

Quando Kolesnichenko voltou ao Limpopo, ao fim da tarde, preparámos o jantar de despedida.

Durante ele convidaram-me, sem qualquer constrangimento e perante outras pessoas, a retribuir a visita deslocando-me à União Soviética como hóspede do "Pravda". Aceitei com uma só restrição: não queria fazê-lo no Inverno pela dificuldade em suportar o frio.

O convite veio noticiado nos jornais de Moçambique (em 19 de Março) quando se revelou, com algum escândalo nacional, que aqueles correspondentes russos haviam percorrido, na minha companhia, mais de 5.000 quilómetros de norte a sul do território, deslocando-se onde tinham querido.

A despedida, na Beira, foi afectuosa e teve mesmo aspectos de emotividade.

Os russos são sentimentais como nós, e tinha-os visto chorar ao escutarem o fado, num retiro castiço, apesar de não entenderem uma palavra. Não estranhei porque sinto o mesmo quando oiço as baladas russas.

Sobre o convite para me deslocar a Moscovo nunca mais tive notícias directas, apesar de havermos mantido correspondência durante meses. Por amigos comuns fizeram-me chegar, delicadamente, a informação de que tal não era de momento possível dada a oposição influente, contra tal visita, por parte do Partido do Dr. Álvaro Cunhal.

Perplexidade americana
O curioso é que, na minha seguinte visita a Lisboa, a embaixada americana me dispensou um interesse a que não estava habituado. As minhas simpatias pelos EUA nunca haviam sido muito pronunciadas, o que não me impedia de estimar individualmente alguns cidadãos americanos.

Por intermédio de Ted Xantaky, que comigo trabalhava na "Sonap", aceitei assim um convite para almoçar com o embaixador Anderson que conhecera em casa dos Almirante Sarmento Rodrigues quando visitara Moçambique.

O embaixador não esperou pelo café para se referir à visita dos jornalistas do "Pravda" e para me alertar quanto ao que haviam escrito. Acrescentou que sabia tratar-se de perigosos agentes soviéticos que se encobriam sob aquela capa.

Agradeci a boa intenção do aviso mas não lhe dei tempo para me mostrar as informações de que dispunha porque logo o esclareci de que também eu sabia de quem se tratava.

E passei a confirmá-lo. Domogatskiy era o encarregado de penetração soviética na África Oriental, tinha servido, com distinção, nas tropas pára-quedistas durante a última guerra mundial, nascera em Voronege em 1923, tinha-se diplomado em ciências históricas, estivera em Peking de 1953 a 1961, dispunha de invulgar cultura e, sendo conhecido pelos seus sentimentos anti-maoístas, fora colocado depois na Europa e em países do Médio Oriente até ser, finalmente, transferido para Nairobi. Quanto a Kolesnichenko (filho de um alto dignatário soviético) nascera em 1930, tinha-se igualmente formado em ciências históricas, especializando-se em assuntos africanos, muito jovem ainda, havia sido um dos mais influentes conselheiros de Patrice Lumumba sobre quem escrevera um livro que tinha sido premiado e estivera em Zanzibar na altura da revolta contra o Sultão que terminara no trágico massacre dos árabes, encontrava-se baseado em Lusaka e era responsável pela subversão na África Central.

O embaixador Anderson confirmou tudo isto mas perguntou-me como é que, sabendo-o, os havíamos convidado. Limitei-me a observar que era por o sabermos que, exactamente, o tínhamos feito.

Quanto aos artigos que tinham escrito para o "Pravda" não os considerava agradáveis embora fossem muito menos agressivos do que outros publicados por respeitáveis e conhecidas revistas norte-americanas. Tinha, além disso, a vantagem de aparecerem num jornal com posição ideológica conhecida.

Deixei a embaixada, com Ted Xantaky, para que o perplexo embaixador pudesse preparar os seus comentários para Washington.

Na imagem: Muralha da China

Já que tinham impedido de me aproximar de Peking, gostava de os preocupar com Moscovo.

Estimaria voltar a conversar hoje com Domogatskiy para que me explicasse como conseguiram a espectacular recuperação soviética no seio da "Frelimo".

E, sobretudo, como poderão arredar definitivamente os chineses que estão longe de terem perdido as últimas cartadas.

É que me mantenho fiel às minhas preferências.

Na opção com Moscovo, continuo em favor de Peking.

(...) As propostas do Dr. Kaunda
No dia 23 de Julho, Pombeiro de Sousa e eu tomámos, em Blantyre, o avião da "Zâmbia Airways" que deslocou às 13.30.

A bordo serviram-nos uma refeição em que quase não toquei e pouca atenção me mereceram as informações do comandante, italiano, quando sobrevoámos Cahora Bassa. Tudo, para mim, se concentrava no destino.

Nem de "visto" dispunhamos mas tudo estava perfeitamente organizado em Lusaka onde nos esperava Mark Chona, assistente pessoal do Presidente Kaunda, acompanhado por Peter Kassanda e Bosco Chibanda. Não podíamos ser recebidos com maior simpatia e instalaram-nos no Hotel Intercontinental, situado junto do bairro diplomático. Recordo que fiquei no quarto n.º 606 e que os nossos anfitriões se ocuparam dos mínimos detalhes à nossa comodidade.

Deram-nos tempo para descansar um pouco mas, Pombeiro de Sousa e eu, aproveitamo-lo para dar uma olhadela em redor e pudemos, assim, comprovar que existia discreto serviço de segurança que nada nos incomodava. Visavam mais proteger-nos contra qualquer interferência desagradável (em Lusaka estavam instalados diversos "movimentos de libertação") do que vigiar o que fazíamos. Notámos isso com apreço.

Ainda nos parecia um sonho estarmos, finalmente, na Zâmbia.

Vieram buscar-nos pontualmente para nos conduzirem à "State House", residência oficial do presidente da República, de marcado estilo colonial britânico, com os jardins e parques arrelvados impecavelmente conservados, e onde sentinelas imperturbáveis montavam a guarda, como se vivêssemos sob o Império de Sua Majestade.

É facto que em todos os países que conheci, de antiga soberania inglesa, foram, invariavelmente, mantidos esses hábitos importados de Albion. No Malawi, no Pasquitão, na África do Sul, na Zâmbia, na Rodésia e na Índia, o aprumo era sempre o mesmo na marcialidade da guarda, no delicado protocolo do acolhimento e na dignidade natural das instalações conservadas sem alteração. Talvez que só na Índia tenha notado um certo desleixo, mas pode bem acontecer que eu tenha sido influenciado por ali me ter cruzado com gente de uniforme usando, descuidadamente, o pouco marcial chapéu de chuva.

Na imagem: Real Brasão de Armas do Reino Unido

Observei, mais uma vez, que os britânicos haviam sido notáveis colonizadores (e sobretudo hábeis descolonizadores) deixando marcados, bem fundos, os traços da sua presença. Até a maioria dos monumentos e dos nomes (das ruas ou das localidades) perdura com respeito, nesses países que visitei.

Se tinham conseguido isso, apesar do seu inveterado racismo, certamente que melhor poderíamos alcançar nós, apoiados no convívio multi-racial.

A Frelimo não era comunista

O Presidente Kaunda recebeu-nos, com afabilidade, numa entrevista que se prolongou das 17.15 às 19.30. Estava acompanhado por Mark Chona e por Peter Kassanda que ia tomando algumas notas.

Tudo quanto eu pudesse ter previsto para este encontro inicial foi superado pelo que se passsou.

Trajando impecavelmente, com certa informalidade estudada, o Dr. Kaunda evidencia simplicidade e natural simaptia, capazes de conquistarem os que se acerquem mais desconfiados. Não fuma, mas preocupa-se em que tudo esteja disposto para comodidade dos que usem fazê-lo e, enquanto conversa, acaricia sempre um lenço que torna mais fáceis os movimentos das suas mãos expressivas.

Depois das saudações de cortesia, passámos a aspectos essenciais, interessando-se por conhecer a situação em Moçambique e o sentido exacto da política da "autonomia progressiva". Tudo lhe descrevi em detalhe, salientando o desejo generalizado de adquirirmos autêntica independência multi-racial com participação dominante da maioria. Informei dos passos decisivos que se haviam dado na criação das estruturas preparatórias (autonomia orçamental, participação das populações na eleição dos orgãos administrativos, acréscimo de poderes da administração local, manutenção da moeda própria com reservas a ela afectas, capacidade de contrôle sobre as importações, constituição de organismos de crédito habilitados a negociarem operações de financiamento, desenvolvimento do ensino sem quaisquer discriminações na frequência, recrutamento de unidades militares de incorporação moçambicana, etc.) consolidando os propósitos enunciados pelo Primeiro-Ministro.

Salientei que a independência política pouco representaria se não existissem previamente essas estruturas sem as quais seríamos arrastados para a órbita de potências estrangeiras. Mencionei-lhe as condições muito especiais da posição geográfica de Moçambique (fronteiriço com seis países: Tanzânia, Malawi, Zâmbia, Rodésia, Swazilândia e África do Sul) de que lhe resultavam relações que haviam de encarar-se com o maior realismo.

Não omiti as minhas preocupações sobre o conteúdo ideológico marxista da "Frelimo", apontando a limitada influência que tinha sobre a população moçambicana (mesmo admitindo os dados divulgados pela "Frelimo" quanto à sua penetração no território) e critiquei certos procedimentos de guerra que utilizava, numa luta em que, militarmente, nunca se poderia arranjar uma solução.

Parecia-me que estávamos no momento de procurarmos a fórmula negociada que, considerando todas as forças em presença, permitisse estabelecer a paz. Referi as diligências que de há muito se vinham realizando na busca de soluções com a activa e experimentada intervenção do Presidente Banda.

O Dr. Kaunda ouviu-me, sem interromper, com enorme atenção. Pombeiro de Sousa interveio reforçando um ou outro ponto da exposição que previamente havíamos concertado. Mark Chona revelava o maior interesse e fazia sinais de favorável entendimento. Peter Kassanda enchia folhas do seu caderno de apontamentos, apenas erguendo os olhos quando algum ponto lhe parecia mais significativo ou surpreendente.

Notei que o Presidente Kaunda sabia escutar e não perdia palavra do que se dizia.

Quando terminei, agradeceu o desenvolvimento e o interesse da minha exposição, mostrou-se surpreendido por se haver ido já tão longe em aspectos na verdade essenciais para se estruturar todo o funcionamento de um país e muito apreciou saber da existência de uma "frente interna" que se encaminhava para uma solução política que visava atingir a independência. Perguntou-me se haveria muita gente pensando como eu, designadamente no sector não-africano cuja confiança era necessário conquistar, para se manterem as actividades produtivas, enquanto se processasse a evolução.

Expliquei não ser possível mencionar números e nem sequer índices seguros. Mas o mais importante seria saber-se em que sentido evolucionava a opinião do sector que referira e que incluía muitos moçambicanos esclarecidos e dos melhor preparados. Essa tendência apresentava-se francamente positiva e referi vários sinais que o comprovavam. Entretanto, exercíamos discreta acção mentalizadora por intermédio dos orgãos da imprensa e da rádio que já controlávamos.

Admiti a existência de alguns elementos extremistas, de ambos os extremos, que não seriam recuperáveis para esta tarefa e que teríamos de afastar do território, quando chegasse o momento, se persistissem em manter a agressividade perturbadora. De qualquer modo, tratar-se-ia de escassas centenas, se a tanto o seu número chegasse.

Outro ponto abordado, pelo Dr. Kaunda, foi o da efectiva vontade do Governo Português prosseguir uma política integrada nos moldes preconizados e da capacidade de Marcello Caetano para levar a cabo essa tarefa.

Na imagem: Brasão da Costa do Marfim

Com total sinceridade dei esclarecimento idêntico ao que transmitira, em Paris, ao Presidente da Costa do Marfim, acentuando que confiava em que Marcello Caetano fosse capaz de dominar os grupos de pressão que se lhe opunham, sobretudo depois das eleições fixadas para Outubro desse ano, em que era de prever uma sólida vitória do Presidente do Conselho. Se isso não acontecesse, ou se o Doutor Marcello Caetano não soubesse usar a sua autoridade, seria inevitável uma confrontação revolucionária, de iniciativa de qualquer das tendências extremistas.

Por mim, não hesitaria, numa ou noutra dessas situações de crise, em antecipar-me tomando a iniciativa de um golpe de estado em Moçambique.

O Presidente Kaunda manifestou que o mais desejável seria realizar tudo na legalidade, ainda que isso significasse demorar-se mais algum tempo a alcançarem-se os objectivos.

Em seguida, procurou tranquilizar-me quanto aos meus receios de influência marxista na "Frelimo", assegurando-me que essa imagem era errada, não correspondia à ideologia dos dirigentes responsáveis e havia sido fabricada pela propaganda adversa. Considerava indispensável que deixássemos de identificar a "Frelimo" como um movimento comunista (embora no seu seio pudessem existir alguns elementos não significativos com tal formação ou tendência) e garantiu-me que Samora Machel, que bem conhecia, preconizava programa muito próximo daquele que expusera.

Pediu-me, insistentemente, para acreditar nas certezas que me transmitia.

Objectei, citando textos e declarações de Marcelino dos Santos que evidenciavam uma linha doutrinária marxista-soviética que não consentia dúvidas e contei o episódio do nosso encontro no aeroporto de Genève. O Dr. Kaunda comentou ironicamente: "Mas quem é Marcelino dos Santo? Pouco tenho ouvido falar nele. E o que pode representar dentro da Frelimo"?

Insisti em que Marcelino dos Santos era o vice-presidente da "Frelimo", que participara no triunvirato estabelecido depois do assassinato de Mondlane e que vencera o enfrentamento com Uria Simango (cujo prestígio naquele movimento tinha sido muito grande) acabando por o afastar. Não me parecia, pois, que se tratasse de personagem com tão pouca importância. Contava, para mais, com o apoio da União Soviética que o tinha como homem de sua confiança.

O Presidente Kaunda foi terminante, com veemente apoio de Mark Chona, nas garantias que me repetiu e pediu-me que as aceitasse como fruto do seu profundo conhecimento da "Frelimo" que acompanhava nos assíduos contactos que mantinha com Samora Machel.

Nesta posição, tão firme, de Kaunda, não me pareceu delicado insistir, mas não fiquei totalmente convencido. Voltei ao tema, como referirei, noutras oportunidades.

Ao longo desta importante e primeira entrevista o Dr. Kaunda referiu-se, com apreço, à atitude das autoridades portuguesas para concederem à Zâmbia acrescidas facilidades de transporte, através de Moçambique (via Malawi). Acrescentou que o comportamento dos portugueses o havia agradavelmente surpreendido e sabia apreciar a a influência exercida pelo Presidente Banda, bem como a minha intervenção de que se mostrou perfeitamente informado.

Retorqui que essa orientação se limitava a ser coerente com a política invariavelmente afirmada de assegurar o livre acesso dos países do interior aos portos sob soberania portuguesa, oferecendo o melhor serviço possível aos seus utilizadores e sem qualquer discriminação baseada em preferências políticas. Essa posição, de estrita neutralidade na observância de um dever, não tinha sido sempre bem compreendida (como no caso dos transportes para a Rodésia depois do bloqueio britânico e da ONU, em 1965) e era-me agradável saber quanto era, agora, apreciada, dado que diligenciaríamos mantê-la imutável no futuro.

Na imagem: Cataratas Vitória (no Rio Zambeze, na fronteira entre a Zâmbia e o Zimbabwe)

Não ocultei ao Presidente Kaunda que poderia, pessoalmente, enfrentar problemas com a realização destes contactos e deslocações a Lusaka, pelo que me parecia conveniente cobri-los com o pretexto da resolução de assuntos de transportes, perfeitamente aceitável pelos observadores, dadas as minhas funções de cônsul do Malawi em Moçambique. Era impossível ocultar por largo prazo estas minhas deslocações e mesmo as visitas ao Dr. Kaunda. O melhor seria dar-lhes aparências, para resposta coincidente às perguntas que, de várias ordens, viriam a surgir.

O Presidente Kaunda concordou inteiramente, combinando-se que esta minha primeira visita à "State House" seria classificada como de mera cortesia e, para tornar as aparências mais verosímeis, fixou-se para o dia seguinte, entrevista minha com Mr Aaron Milner que era, então, secretário geral do governo e tinha, a seu cargo, a coordenação do programa de transportes. Milner deslocava-se com frequência a Blantyre onde já nos havíamos encontrado.

Com esta combinação nos despedimos e Mark Chona veio a revelar-nos que o procedimento fora extremamente útil. Efectivamente, poucos dias depois de eu regressar ao Malawi, a diligente embaixadora americana havia-o interrogado sobre as razões da nossa presença e recebera resposta planeada. Assim conseguimos, com efeito, manter tranquilos os observadores incluindo os diplomatas portugueses, baseados em Blantyre, que só mais tarde vieram a saber do motivo das minhas frequentes deslocações a Lusaka (ob. cit., pp. 66-72 e 93-98).

Continua

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (iii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Fortaleza de S. Sebastião (Moçambique)

Entre Banda e Salazar
O Doutor Salazar, a quem eu ia informando do andamento das coisas, mostrava uma curiosidade interessada pelos inesperados resultados que se iam verificando. Disso vieram a ser testemunhas, entre outros, o Dr. Corrêa de Oliveira e o Dr. Paulo Rodrigues que me assinalavam a tolerância com que o Presidente do Conselho se referia aos meus procedimentos que o intrigavam mas em que sempre confiava.

Creio que, na verdade, beneficiei de uma liberdade de movimentos de que poucos terão auferido, sendo certo que o Doutor Salazar tinha predilecção especial por deixar canais diversos seguirem caminhos diferentes por forma a, na altura das decisões, poder usar a opção que julgasse mais conveniente para o interesse nacional. É assim que os homens de Estado devem governar tendo em conta, como numerosas vezes me disse, que "os países têm interesses, não podem ter paixões."

Numa notável carta manuscrita (contendo longas nove folhas) que me escreveu em 26 de Julho de 1964, logo a seguir aos meus primeiros relatórios e depois da independência do Malawi, mostrava a melhor compreensão pelos novos caminhos em que íamos seguindo, ao escrever:

"Creio que temos procedido de forma a permitir ao Dr. Banda uma atitude correcta e até amigável para connosco, sem se comprometer. Penso que ele não pode fazer outra política diferente da da boa vizinhança e alguns recortes da imprensa, não só do Times do Malawi mas de outros países africanos, dão-me a impressão de ser compreendida essa política, pela impossibilidade material de fazer outra e pelas vantagens imediatas e certas que esta trará à antiga Niassalândia. É natural que o Dr. Banda tenha dificuldades a vencer junto dos outros países africanos que verão com muito mau modo a sua aproximação com Portugal. Talvez eles se contentem com algumas afirmações demagógicas e anticolonialistas. Esta política tem, pois, as suas dificuldades, mesmo para nós que temos de deixar passar muita coisa; é, porém, a que deve fazer-se de um e outro lado."

Pouco depois, em carta de 17 de Agosto, acrescentava:

Na imagem: mesquitas (Cairo)

"Quanto ao consulado do Malawi na Beira e à designação da pessoa que devia encarregar-se do mesmo, tudo se fez para que não se perdesse tempo. As ausências do Dr. Banda, primeiro em Londres na conferência da Comunidade Britânica, e depois no Cairo, pareceu-me contra indicarem uma carta que levaria bastante tempo a ser-lhe entregue. Por isso se telegrafou sem demora, na suposição de que os serviços pretendessem dar andamento ao caso. Por outro lado, o assunto devia passar exclusivamente pelas Necessidades. Em todo o caso posso responder agora ao Dr. Banda a dar-lhe conta do que se fez e de como se fez. Se espera uma resposta, esta dar-lhe-á algum prazer. Os jornais noticiaram a nomeação do cônsul e é bem que, de mistura com as suas muitas ocupações, ache um pouco de tempo para estes assuntos do Malawi e do nosso Moçambique."

Seguindo uma política de realismo, comentava os meus propósitos de tentar o contacto com a Zâmbia (que viria a ser dependente em Outubro desse ano) escrevendo:

"Sem relações diplomáticas ou consulares, tratar os assuntos que têm de ser tratados vai ser muito difícil e não deixa aberta senão a via pessoal a que me referi acima. A nossa política geral para com os três territórios que constituíam a Federação continuará a ser a mesma, se for possível executá-la. Como soberanos nos territórios costeiros, sentimo-nos obrigados a dar as facilidades possíveis aos territórios do interior. Ponha em jogo a sua imaginação e relações pessoais a ver o que consegue fazer."

Concordava, ainda, com a minha deslocação ao Ghana (que o Dr. Banda me recomendara) e com a visita a Madagáscar (preparada por amigos franceses) apenas recomendando com amizade:

"Não deve ir, correndo riscos; será muito bom que possa ir, se em segurança."

Na verdade, estas minhas múltiplas deslocações, a territórios havidos como suspeitos, deixavam-no em sobressalto até porque conhecia as condições rocambulescas em que, depois da invasão de Dadrá, eu me escapara de Bombaim ludibriando a polícia indiana que cercou reunião clandestina da "resistência goesa" a que me atrevera a presidir. Mas isso são outros contos que ficam para próxima oportunidade.

O que interessa registar é que a acusação de imobilismo não corresponde à verdade. Pelo menos consentiu-me apreciável mobilidade, não desperdiçava oportunidades e quase me encorajava a explorá-las. Muito mais longe ainda foi como adiante revelarei.

Correspondência secreta

Só em 1965 consegui, influenciando um e outro, estabelecer contacto directo, por escrito, entre Banda e Salazar. Servi-me do desejo comum de se construir a ligação ferroviária de Nacal com o Malawi. Tudo se processava à margem dos canais diplomáticos.

Na imagem: Oliveira Salazar

O Doutor Salazar, em 7 de Maio, assegurava o seu interesse pelo projecto e que iria determinar um estudo para poder ser tomada uma decisão final. E acrescentava:

"Concordo inteiramente com V. Ex.ª de que, entretanto, é do nosso comum interesse que seja mantido o conveniente segredo. Posso assegurar de que pela nossa parte o faremos."

O Dr. Banda respondia, sempre por meu intermédio, em 29 de Agosto, numa longa carta em que apreciava o problema criado pelos refugiados moçambicanos que afluíam ao Malawi, por milhares, nas zonas de Likoma e de Milange ocupando-se as autoridades portuguesas de proverem à subsistência dessas populações deslocadas.

Comentando o assunto, o Dr. Banda referia:

"A este propósito gostaria de informar a V. Exª quanto têm sido extraordinariamente auxiliadores e cooperantes o Sr. Jardim e o Dr. De Sousa. Têm sido extremamente úteis para o Governo do Malawi não apenas na resolução dos problemas dos refugiados moçambicanos na Ilha de Likoma como também, ao tratarem outros problemas melindrosos que afectam as relações entre Moçambique e o Malawi ou entre Portugal e o Malawi. Estes senhores são verdadeiros patriotas portugueses com excelente conhecimento e prático senso comum da diplomacia, que se opõe à diplomacia teórica e profissional que, em muitos casos, é um desastre".

Ao entregar esta carta, em Lisboa, o Doutor Salazar nem esboçou um sorriso, mas aceitou a minha recomendação para receber Pombeiro de Sousa com quem conversou longamente.

Quando ficámos a sós disparou-me a pergunta inesperada "Mas, afinal, como é esse seu amigo Banda que parece tê-lo conquistado?"

Foi, então, que lhe dei a resposta que correu Lisboa, em indiscrição que não me pertenceu: "Tal e qual V.Ex.ª, mas em preto".

Poucas vezes vi o Doutor Salazar rir-se com tanto gosto.

Mas era inteiramente verdade.

A mesma tendência para o recolhimento, a mesma devoção ao interesse nacional, o mesmo gosto pelas janelas fechadas, a mesma ausência de contactos íntimos influenciadores e até a mesma austera vida pessoal servida por devoções semelhantes. Só que o Dr. Banda exteriorizava a sua autoridade e realizava sem constrangimento as aparições públicas com notável poder de arrastar as massas.

O Doutor Salazar nunca se esqueceu daquela minha comparação. E por ela terá medido a minha estima pelo Dr. Banda.

Por isso, em 24 de Setembro, lhe respondia:

"Foi-me grato ler as palavras que V. Ex.ª escreve a propósito da acção do Eng.º Jardim e do Senhor Pombeiro de Sousa. Também pude receber este, na sua passagem por Lisboa, recentemente, e só podia ser-me agradável ouvir o que me disse a respeito dos contactos com o Governo de V. Ex.ª e dos problemas comuns em que ambos, porém, sem esquecer o seu país, revelam a maior fidelidade e dedicação a V. Ex.ª e ao Malawi."

Para concluir, referindo-se à visita do Dr. Banda a Madagáscar:

"Espero confiadamente que à volta de V. Ex.ª, do Presidente de Madagascar e de outros chefes que vêem pelo mesmo prisma os problemas de África, se erga uma barreira contra a demagogia e os extremismos que ameaçam lançar no caos tantos países, com prejuízo para o seu desenvolvimento económico e estabilidade política. Não posso senão fazer votos para que triunfe a política traçada por V. Ex.ª e felicitá-lo pela coragem com que a tem defendido."

A troca de cartas foi-se tornando cada vez mais frequente e não é este o momento próprio (porque disso me ocuparei em próximo livro) para publicar toda essa volumosa correspondência secreta de alto nível).

Nas minhas andanças, entre Banda e Salazar, diligenciava fazer entender os respectivos pontos de vista na evolução que se impunha e ia sendo progressivamente realizada.

Em vésperas do Natal de 1965 era Salazar quem escrevia:

"Creio que vai soar a hora dos moderados, dos homens ponderados e realistas que não estão dispostos a sacrificar a paixões desrazoáveis o bem estar dos povos que lhes estão confiados. Pressinto que haverá ainda alguns apelos à violência de que será preciso os responsáveis defenderem-se com prudência, para disporem de possibilidades de acção quando se quebrarem as últimas ondas das agitações estéreis."

Na imagem: Lago Malawi

Passando sobre os problemas emergentes da declaração de independência unilateral da Rodésia com a consequente necessidade de apoio da Zâmbia, que o Dr. Banda sempre defendeu e adiante referirei, as minhas maiores dificuldades resultaram, nessa altura, da acção das tropas portuguesas e da falta de senso da representação diplomática no Malawi.

A este propósito escrevia o Presidente Banda a Salazar em 9 de Junho de 1966:

"Nem eu pessoalmente, nem o meu governo temos objecções a que a Embaixada de Portugal celebre privadamente o Dia Nacional português como até agora tem sido feito. Mas ponho em causa, seriamente, o bom senso de celebrar o Dia Nacional português publicamente como a Embaixada de Portugal está a fazer este ano. Nas presentes circunstâncias em África, isto é uma desnecessária provocação, para já não me referir aos embaraços que causa ao meu governo. Não é certamente no interesse das boas e amistosas relações entre o Malawi e Portugal. Por isso peço a Mr. Jardim para informar V. Ex.ª imediatamente."

Esta foi, aliás, apenas uma das complicações que me resultou da acção da embaixada que parecia arder em ânsias nacionalistas que vieram a acentuar-se, depois, com Futcher Pereira.

(...) Peking ou Moscovo
Quando iniciei a minha actividade no Malawi, eu dispunha do melhor ambiente no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, instalado no Palácio das Necessidades e por isso conhecido com tal designação.

O Dr. Alberto Franco Nogueira (que tão injustamente veio a ser tratado por Marcello Caetano e tão dramaticamente perseguido depois do "25 de Abril") foi uma das grandes conquistas pessoais do Presidente Salazar. A sua formação liberal, bem vincada nos tempos académicos, tinha sido seguida por uma actividade cultural que nitidamente a evidenciava. Quando vejo classificá-lo de "fascista" não posso deixar de medir a pobreza mental de quem o faça.

O que aconteceu é que começando por exemplar, com probidade profissional, a política externa do governo, acabou por a conduzir convictamente na defesa intransigente e mesmo dura da integridade do Ultramar considerada no conjunto da Pátria Portuguesa.

Trabalhámos juntos e sabia que não poderia contar com a sua adesão para a política de realismo que eu viria a advogar. Por isso nunca lhe apresentei essa opção. Respeitava-o na sua sinceridade honesta e não desejava afectar a nossa amizade.

Poderia discordar-se de Franco Nogueira (e eu discordei) nalguns aspectos da sua actuação, mas parece-me indigno que portugueses viessem a encarcerá-lo pela convicta defesa da sua patriótica posição.

Na imagem: Franco Nogueira

Diplomata de alto nível bateu-se com intransigência pelos quadros da carreira profissional, cometendo talvez o erro de avaliar os outros por si próprio. Introduziu reformas no Ministério que na sua objectividade estrutural conduziram, no dizer de colegas seus, a instaurar o predomínio da mediocridade. Por outro lado, opunha-se ao ingresso na diplomacia pela via política e com tal orientação, terá travado uma valorização competitiva estimulante. A carreira, efectivamente, fora anteriormente enriquecida pela aquisição de homens como Pedro Theotónio Pereira, José Nosolini, Carneiro Pacheco, Duque de Palmela, Gen. Venâncio Deslandes e Luiz Pinto Coelho, para só citar os que melhor recordo.

Nas Necessidades coincidia, efectivamente, a mediocridade arranjista de muitos (que vieram a revelar depois da revolução a mais despudorada falta de carácter) com a valia técnica e intelectual de outros. Homens como Marcelo Matias, Rocheta, Martins de Carvalho, Calvet de Magalhães, Rui Guerra, Hall Themido, Garin Freitas Cruz, Siqueira Freire e, mesmo, Menezes Rosas (para só citar aqueles com quem directamente trabalhei) constituíam um escol digno de todo o apreço. E na camada mais jovem, os nomes de Soares de Oliveira, Pereira Bastos, Cabrita Matias, Lopes da Costa e Fernando Reino (para continuar a mencionar os que melhor conheci) evidenciavam-se com qualidades nem sempre aproveitadas pela melhor forma. Uma referência é, ainda, devida a Pedro Pinto que a revolução veio encontrar como Secretário de Estado da Informação e que compensava a sua total desorganização no trabalho com a imaginação fecunda e dinâmica que dele transbordava.

Em 1964 era director geral dos negócios políticos do Ministério o inesquecível José Manuel Fragoso, de formação liberal mais radicalizada e profissional dos mais distintos que a carreira contava. Actuava como o braço direito de Franco Nogueira, exercendo acção moderadora que a intimidade das relações lhe consentia. Deu-me todo o apoio e estímulo nos meus primeiros passos no Malawi, cujo prosseguimento antevia com clareza.

Chamada urgente a Lisboa

Foi neste ambiente de estreita colaboração, que só mais tarde os medíocres viriam a perturbar, que recebi um telegrama de Franco Nogueira (em Janeiro de 1964) logo seguido por uma comunicação telefónica do governador-geral, Almirante Sarmento Rodrigues, pedindo a minha urgente presença em Lisboa.

Estranhei os termos prementes da convocação quando se sabia que eu estava, nessa altura, tentando embrenhar-me apaixonadamente na missão do Malawi. Não fazia sentido o meu afastamento e receei que nas Necessidades não estivessem ao corrente da importância que o Presidente do Conselho atribuía à tarefa que me confiara.

Refilei com Lisboa, pela via do governo-geral, e a resposta surgiu sem demora pelo mesmo canal em 30 de Janeiro dizendo textualmente: "Favor explicar engenheiro Jardim ser urgente sua vinda Lisboa por desejarmos confiar-lhe missão especial". Pedi para me esclarecerem sobre o tempo que essa missão me reteria e não resisto a reproduzir a bem humorada réplica que me fizeram chegar: "Cinco dias, cinco semanas ou cinco meses".

Claro que, com as coisas postas nestes termos, eu estava em Lisboa na tarde de 4 de Fevereiro.

Franco Nogueira atendeu-me logo no dia imediato e disse-me tratar-se de uma tentativa de estabelecimento de relações com a China Popular. Tinham-me escolhido pela delicadeza da missão que não poderia fracassar, dado tudo quanto nela se jogava. O Presidente do Conselho tinha estado reticente mas dera a sua concordância, tal como aprovara o meu nome.

As sondagens haviam revelado receptividade por parte de Chu-en-Lai que em Conakri concedera uma entrevista a um jornalista americano de total confiança chinesa (Edgard Snow que acompanhara Mao-Tse-Tung na sua "longa marcha") afirmando que a posição anticolonialista não era incompatível com o restabelecimento de relações com Portugal, embora houvesse sublinhado que não tinha conhecimento de qualquer propósito de Lisboa em tal sentido. Essas declarações tinham sido publicadas no dia 3 de Fevereiro e respondiam a artigos aparecidos na imprensa portuguesa ("Voz" e "Diário de Notícias") advogando a aproximação com a China Popular no seguimento de ideias que Franco Nogueria confidenciara, em Madrid, a um correspondente estrangeiro que se apressara em fazê-las circular.

Na imagem: Escudo de Armas (Macau Portuguesa)

Através de Macau dispunhamos de um bom contacto, Ho Yin, que estaria disposto a acompanhar a Cantão (onde mantínhamos um consulado) uma missão comercial portuguesa a que eu presidiria. Em Cantão tudo se organizaria para prosseguirmos até Peking.

Franco Nogueira esclareceu-me de que esta aproximação deveria ser genuína e, desde que iniciada, levada às últimas consequências ou seja o estabelecimento de relações oficiosas que desembocariam, a curto prazo, em relações diplomáticas.

A China Popular teria interesse político nisso, pelo que representava a ostensiva libertação da tutela americana por parte de um país, como Portugal, membro da Aliança Atlântica e tradicionalmente anticomunista. Depois do reconhecimento francês (que havia sido duramente atacado na NATO com a única posição favorável da Alemanha e de Portugal) isso traduziria notável vitória para Peking cujas compensações contávamos recolher. Mas era preciso andar-se depressa para não tardarmos entre os países ocidentais que viriam, certamente, a seguir o mesmo caminho.

Em conclusão: a manobra depois de iniciada era irreversível e tinha de ser feita convictamente, com sinceridade.

Para além do meu invocado jeito para lidar com os mais estranhos países, sabia-se da minha simpatia pela China Popular e mesmo de certas posições que tomara em favor da sua ideologia.

Não neguei. Disse que aceitava a missão. e conclui que estavam bem informados. Todo o meu sonho, de há muito, era conhecer directamente a China Popular e tentar compreender o milagre da sua revolução doutrinária num país de milénia cultura e tão vastas proporções humanas.

Preparei-me, afincadamente, para aumentar a minha modesta cultura sobre esse insondável mundo e mandei vir, pelo telefone, todos os livros disponíveis em Paris. Foi daí que me resultou conhecer com apreço crescente, os oito volumes da obra genial de Mao-Tse-Tung.

Missão Cancelada
Franco Nogueira, entretanto, preveniu-me de que a agitação americana já se havia desencadeado e que o embaixador (Almirante G. Anderson) o tinha procurado, manifestando as preocupações do seu governo perante uma tal eventualidade e argumentando em termos quase duros a que o ministro português havia respondido com firmeza.

O ministro não estava preocupado com isso pois os EUA acabavam de pedir reforço de facilidades nos Açores e mesmo a concessão de apoios na Madeira e no Continente para orientação de foguetões, para se acrescer a eficácia contra alvos vitais soviéticos. O Governo Português não desejava envolver-se em mais compromissos que viriam agravar o risco no caso de uma eventual confrontação nuclear, mas manteria as conversas, em base amigável, para explorar o interesse americano. Não era assim crível que a reacção dos EUA pudesse ser violenta perante a nossa aproximação com Peking pois não desejariam um rompimento que pudesse pôr em causa aqueles ambicionados apoios estratégicos.

José Manuel Fragoso estava tão entusiasmado como Franco Nogueira na concretização do plano que tinham decidido confiar-me, mas mantinha dúvidas quanto à realização por recear o impacto das já desencadeadas pressões americanas. Acrescia que, internamente, a extrema-direita se movimentaria contra tal abertura acusando-se, mesmo, o ministro de ser influenciado por "razões conjugais". Efectivamente a mulher de Franco Nogueira (a Verinha) era chinesa e filha de um diplomata que depois da revolução havia sido condenado à morte e tivera pena reduzida para 12 anos de prisão, sendo indultado depois de haver cumprido 5. Vivia em Xangai como professor de línguas. Só por calúnia ou manobra política, se podiam envolver os problemas familiares neste grave assunto.

Na imagem: D. Afonso de Albuquerque, 2.º Governador da Índia Portuguesa

Ao corrente do planeado estava o prof. Adriano Moreira, que já defendera atitude semelhante (em 1961) quando da invasão de Goa pela União Indiana. Entendia não se dever abandonar esta última oportunidade mas duvidava que houvesse decisão para o fazer.

Enquanto passavam os dias e Franco Nogueira não me transmitia instruções concretas, as minhas apreensões iam-se agravando. Tinha conversado com o Ministro da Defesa Nacional (Gen. Gomes de Araújo) e com o Ministro das Finanças (Prof. Pinto Barbosa) que eram muito da minha intimidade. Havia-os encontrado apreensivos sobre a possibilidade de se manter o esforço de guerra no Ultramar sem a decidida ajuda, indirecta, americana.

Chegámos, assim, ao dia 20 de Fevereiro (levava eu duas semanas em Lisboa) sem que o Ministro dos Estrangeiros obtivesse uma decisão do Doutor Salazar apesar de com ele haver trabalhado em duas oportunidades.

Para mim isso não era bom sinal, com certeza. O José Manuel Fragoso pensava da mesma forma e estava desalentado.

Com a concordância de Franco Nogueira decidi-me a telefonar directamente ao Presidente do Conselho que, sem demora, me marcou uma entrevista. Tratados outros assuntos (com dominância para o caso do Malawi) apresentei-lhe frontalmente o problema que me tinha feito vir até Lisboa.

Foi evasivo, não argumentou com clareza habitual e ficámos em que eu regressaria a Moçambique para onde me comunicaria, logo que possível, as decisões que viesse a tomar. Recomendou-me que, quando tivesse tempo, continuasse a estudar os problemas chineses pelos quais tanta predilecção evidenciava.

Assegurou-me, de bom humor, que eu seria o primeiro embaixador em Peking se um dia houvesse relações diplomáticas.

Franco Nogueira e José Manuel Fragoso ficaram desolados. Muito congeminámos sobre as razões que teriam levado o Presidente Salazar, contra os seus hábitos, a recuar sobre uma decisão tomada. Repetidas vezes o voltámos a fazer depois e nunca topámos com uma explicação completa.

Para mim, fora de dúvida, a pressão americana deveria ter sido tremenda. Só nunca saberei a que argumentos e meios recorreram (ob. cit., pp. 69-53 e 61-66).

Continua

domingo, 12 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (ii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Lago Niassa

Umboni
Ainda não passaram três anos!

E como tantas esperanças derruíram!

Em 14 de Setembro de 1973 encontrei-me com o Presidente Banda, do Malawi. Não se tratava, porém, de mais uma entrevista como tantas outras tivéramos e em que cimentáramos mútua compreensão e amizade.

Desta vez parecia estar, finalmente, à vista, a possibilidade de se resolverem os problemas de Moçambique terminando uma guerra para a qual nenhum dos lados podia pretender impor uma solução militar.

Nesse dia, o Dr. Banda recebeu-me em Kazungu, sua terra natal, e acompanhava-me Jaime Pombeiro de Sousa que sempre estivera comigo nestes anos de esforços persistentes.

Havíamos regressado de Lusaka, depois de intensas jornadas de trabalho na capital da Zâmbia, em íntimo contacto com o Presidente Kaunda. A coincidência de posições tinha sido completa.

Passáramos a fronteira da simples esperança.

Estava definido e escrito, sob a responsabilidade do Governo da Zâmbia, o programa a seguir para se alcançar a paz e se negociarem as condições de uma descolonização honrosa que permitiria aos moçambicanos ascederem à independência em dignidade, harmonia, justiça e progresso.

Também estavam fixados e escritos, os princípios que esse programa haveria de seguir com expresso respeito pela posição de Portugal, cuja obra meritória se reconhecia, e garantindo-se, em linguagem clara que o novo Moçambique não se converteria em satélite africano das potências comunistas.

Na imagem: Foz do Iguaçu (Brasil)

Ficara sublinhado o carácter autenticamente multi-racial da sociedade moçambicana, como criação de espírito ímpar evidenciado pelos portugueses no convívio com povos a quem haviam dado a unidade e a quem haviam oferecido o contributo da sua cultura e forma de ser. Esquematizara-se a majestosa Comunidade Lusíada na qual o Brasil seria solicitado a assumir participação desejada.

O Dr. Kamuzu Banda comentava com entusiasmo as perspectivas que se anteviam para as metas ambicionadas, coroando o trabalho iniciado há tantos anos.

Compreendia-se que assim fosse porque, em tudo, muito se ficava devendo à posição esclarecida do estadista africano que soubera combinar os anseios do seu indesmentível nacionalismo com o conhecimento das realidades que atentamente acompanhava.

Quando um dia se vier a fazer a história objectiva da descolonização da África Austral terá de reconhecer-se quanto representou, nessa etapa política, a equilibrada intervenção do Ngwazi Dr. Kamuzu Banda.

Aliás, não havia sido menos patente a emoção exteriozidada pelo Dr. Kenneth Kaunda quando, na sua "State House" de Lusaka, analisáramos, durante quase três horas, os resultados do nosso comum exame de problemas. Com isso, concluímos dois esgotantes meses de contactos em que lhe pertencia muito do auspicioso trabalho produzido, sem horas de descanso e com prioridade declarada sobre tudo o mais.

A certeza de que a Tanzânia apoiava o que entendêramos ser uma plataforma aceitável e de que a "Frelimo" participava nos nossos comuns propósitos foi-nos dada (e sempre confirmada) pelo Presidente da Zâmbia.

O "Programa de Lusaka" nascera a 12 de Setembro de 1973 por iniciativa do Dr. Kaunda e como esperança de paz honrosa.

Para além do mais tinha o raro mérito de não ser susceptível de interpretações divergentes. Nisso, ao menos, podíamos orgulhar-nos do trabalho realizado para ser recebido com entusiasmo por todos os moçambicanos e aceite com dignidade por todos os portugueses.

Faltava obter o reconhecimento do Governo de Lisboa ou, na falta disso, mobilizar o necessário para que tivesse de concordar com a solução que arquitectáramos.

Pertencia-me levar a cabo essa missão. Para isso, tudo viemos a discutir minuciosamente.

No apoio do Presidente Banda e do Presidente Kaunda se alicerçava todo este travejamento político.

Daí, aquele encontro em Kazungu depois das entrevistas de Lusaka.

Ainda não passaram três anos!

Rodou o tempo e muito de imprevisto aconteceu.

Em Junho de 1975 nascia a República Popular de Moçambique.

Tudo tão diferente do que se havia programado!

Sem consulta ao povo, sem apoio popular autorizado e sem mesmo as gentes se poderem pronunciar, proclamou-se um estado marxista de inspiração soviética. As poucas dúvidas que pudessem subsistir nos textos legais foram logo supridas pelos dizeres dos discursos dos responsáveis e pelas posições que têm vindo a assumir.

Assistiu-se ao insulto aberto à presença portuguesa de cinco séculos.

Apearam-se estátuas que pertenciam ao património histórico de Moçambique e mudaram-se, no mais afrontoso ridículo, nomes que tinham arreigada tradição.

Desprezou-se a Comunidade Lusíada, em obediência a novas servidões. Provocou-se, sistematicamente, o êxodo de dezenas de milhar de pessoas, no mais exacerbado racismo e sem atender a que a maioria delas era genuinamente moçambicana. Destruiu-se a economia do país, com a saída dos melhores valores profissionais e com imposição de estruturas marxistas inadaptáveis às tradições tribais. A fome alastra e o desemprego cresce. Montou-se a mais severa repressão policial sem respeito pelos mínimos direitos individuais, reduzindo ao silêncio consternado milhões de pessoas que até têm medo de pensar. Eliminaram-se, raptaram-se ou torturaram-se quase todos os elementos politicamente válidos. Os que não conseguiram exilar-se tiveram, para sobreviver, que realizar confissões públicas sob a implacável ameaça dos seus algozes.

Tudo isto se passou sob a criminosa indiferença, ou mesmo cumplicidade, do general Costa Gomes. Esse Presidente da República que o povo português não escolheu, aviltou-se, ainda mais, ao enviar a Moçambique um primeiro-ministro que se humilhou a pedir perdão para um passado de que tínhamos sobradas razões de orgulho e ouvíramos elogiar a estadistas negros qualificados.

As festivas rajadas das metralhadoras dos guerrilheiros tudo abafaram, nessas celebrações da independência, como se não tivesse chegado a hora de se calarem as armas.

Até os fiéis aliados chineses foram surpreendentemente traídos pela minoria soviética que se apoderou do contrôle da "Frelimo".

Os moçambicanos deixaram de ser irmãos para passarema a ser, apenas, camaradas.

Aconteceu isto há menos de um ano!

Como foi possível que tudo se subvertesse?

Como aconteceu que um programa de dignidade e de respeito pelos valores permanentes, fosse substituído em menos de dois anos pelo abandono criminoso?

Porque é que Moçambique não foi o que poderia ter sido?

Porque é que teve de ser tão diferente e tão pior?

Julgo estar em posição de responder e de o poder fazer com apoio em documentos e testemunho incontestáveis.

Por isso me decido a divulgar estas páginas dolorosas.

Mantive-me sempre fiel à palavra dada em Lusaka, em Setembro de 1973.

Vez alguma faltei ao compromisso de honra assumido.

Aceitei e defendi, a participação dominante da "Frelimo" na estruturação política de Moçambique. Por isso defendi, ainda, a negociação directa com a "Frelimo" para se estabelecer a paz.

Fiz isso antes do "25 de Abril" e mantive depois a mesma posição, até ao extremo limite possível. Sei que, por o fazer, fui mesmo chamado de traidor.

Só acontece que aqueles que de tal me acusam nunca partilharam, em Moçambique, dos riscos de guerra que eu aceitei e não têm no corpo as marcas de soldado que, mais do que as medalhas, me honro de ter recebido. Nunca jogaram ali a vida e nunca viram tombar, ao lado, camaradas.

Dizia um companheiro meu, de Angola, que a mira da espingarda não nos faz ver melhor os problemas. Mas acrescentava que nos permitia vê-los com mais autoridade. É essa que falta aos que nunca combateram, para na guerra aprenderem a procurar honrosamente a paz.

Para que desapareçam as dúvidas ou as meias verdades é preciso saber-se ao certo o que se passou nestes últimos anos para se conhecer a evolução dos problemas e das ideias, quais os passos que se deram e como se impediu que prosseguissem. Assim arcará cada qual com o seu quinhão de responsabilidades.

Não enjeito as que me possam pertencer. Posso ter-me enganado, mas nunca traí. Posso ter errado, mas nunca cometi indignidades.

Naquilo que procurei alcançar, Moçambique teria sido a pátria feliz de todos os moçambicanos e onde se sentissem em casa própria para nela aceitarem quantos, com eles, quisessem contribuir para a tarefa comum. Casa com fundos alicerces lusíadas. E, sobretudo, casa livre de hipotecas.

Houve outros que, premeditamente, não quiseram que assim fosse.

Houve outros que não souberam ter coragem de decisão que teria evitado a tragédia. E bem os alertei a tempo.

Como nos julgamentos tribais das gentes vizinhas do Grande Lago Malawi, o testemunho (o UMBONI) tem de ser por mim prestado para que os implacáveis juízes, em torno da fogueira, ditem a sua presença.

Com eles convivi longos anos. Perante eles denuncio e acuso.

UMBONI é testemunho sagrado em que a mentira não pode ter lugar.

Ninguém se atreveria a arrostar com as iras dos espíritos vigilantes que, entre os Nyanjas, guardam a honra e a justiça.

UMBONI, UMBONI, UMBONI, para dizer toda a verdade.

O crime e a traição não podem persistir em Moçambique. Ainda quero crer que, em dia não distante, poderá o país encontrar o seu caminho na independência verdadeira e liberta de novos colonialismos.

Penso que a própria "Frelimo", quando recuperar a sua autenticidade moçambicana, poderá definir os rumos da salvação nacional.

Sei que existe, na "Frelimo", maioria de homens que são, na verdade, os genuínos nacionalistas que o Presidente Kaunda me apresentou com sinceridade da qual, ainda hoje, não duvido. Acredito que não mentiram nas mensagens que me enviaram e nos contactos honrados que tivemos.

Homens da "Frelimo" a quem combati quando foi tempo de lutar, jogando a vida com eles, e a quem não hesitei a apertar a mão quando foi tempo de nos entendermos.

Avalio como devem sentir-se atraiçoados pela minoria despótica que os domina, apoiada por estrangeiros, renegando as esperanças acalentadas em anos de luta e destruindo a curta felicidade que todos os combatentes viveram.

Por estes, também se dirige o meu UMBONI.

Que saibam fazer justiça.

Que saibam libertar Moçambique.

Convivência, diálogo e entendimento

(...) Com efeito os contactos com o Malawi, e concretamente com o Presidente Banda, tiveram incidência directa muito importante no processo preparatório da descolonização e na fase do seu aceleramento que viria a ser interronpida, como mais adiante descreverei, por acções resultantes da revolução portuguesa de 1974.

Sabe-se que desempenhei papel de certo relevo nessas relações com o Malawi mas, para que o processo possa ser correctamente entendido, tenho de referir como se iniciou essa aproximação, quais os intuitos que a conduziram e como isso veio a influenciar, marcadamente, a minha posição no quadro global do problema.

Numa tarde da Primavera de 1963, o Presidente Salazar convocou-me, como tanto era seu hábito, para mais um encontro na sua residência oficial na Calçada da Estrela, em Lisboa. Não tínhamos agenda de trabalho fixada e nem havia problemas concretos a falar.

Nada estranhei porque isso acontecia muitas vezes e o Doutor Salazar não ocultava o gosto por estas conversas em que discorria sobre assuntos de Estado ou sobre coisas de somenos, na certeza de eu nada repetir daquilo que abordávamos e de ter, mesmo, a precaução de ordenar os meus apontamentos por forma a não ser possível alguém interpretá-los.

Recebeu-me com a pontualidade escrupulosa do costume (que só conheceu excepções que foram da minha culpa) nesse gabinete de trabalho sempre ordenado na aparente desarrumação dos papéis que ocupavam a mesa de trabalho, as cadeiras e até parte do velho tapete que cobria o chão.

Eu estava a regressar a África e nessas vésperas de viagem o Doutor Salazar procurava fazer o ponto da situação, no seu jeito sereno de xadrezista, por forma a que pudéssemos ficar sincronizados sobre os problemas, permitindo-me actuar dentro das suas directivas mesmo quando as questões se agudizavam bruscamente e o contacto não era fácil.

Importa muito esclarecer que raramente dava ordens concretas e nem sequer gostava de o fazer. Preferia transmitir o seu pensamento orientador, com vista à mais consciente execução perante o evoluir das circuntâncias. Aceitava o diálogo e sempre me consentiu que formulasse sugestões, discutisse programas ou discordasse de pontos de vista. Não foram poucas as vezes em que transigiu sem constrangimento.

Nessa tarde estava abertamente decidido a conversar. Se não o conhecesse bem, tudo pareceria rotineiro. Notei-lhe, porém, fulgor especial nos olhos e uma quase agitação sorridente de que os menos íntimos certamente se não aperceberiam.

Na imagem: Padrão da Fortaleza Portuguesa de Diu

Recordou os acontecimentos de Angola e do Estado da Índia em que recentemente eu intervira, fazendo a guerra ou realizando missões diplomáticas, felizmente com êxito. Sublinhou a necessidade de estarmos em inteira sintonia e pediu a melhor atenção para o que, com esse intuito, me haveria de expor.

Resumiu a evolução geral dos problemas africanos a que o Ultramar não poderia eximir-se. Esboçou o quadro da política internacional, prevendo a crescente pressão do que veio a chamar-se "terceiro mundo" com desagrado inicial das nações do ocidente e futura aceitação oportunista por essas mesmas potências. Não tinha dúvidas sobre o progressivo reforço do bloco comunista, numa estratégia que classificou de hábil e inteligente, perante a decadência e divisões da Aliança Atlântica.

Concluiu, com frieza analítica, pela inviabilidade de a guerra em Angola se agravar, de a Guiné haver de enfrentar o assalto convergente de interesses diversos e de Moçambique também ter de suportar o conflito que se iniciaria por incursões ao longo das fronteiras.

Não confiava na colaboração da África do Sul ou da Rodésia do Sul que, aliás, não desejava. Explicou-me que não era do nosso interesse aliarmo-nos com países de tendência racista cuja política não coincidia com a visão portuguesa do futuro humano da sociedade africana. Entendia que isso não só era contra a nossa ideologia como seria lesivo da nossa imagem internacional. Preocupava-o, muito, que nada afectasse os laços que nos prendiam ao Brasil, anti-racista, e que pretendia estreitar cada vez mais.

Falou-me, com vibração que anotei, do futuro que antevia para a planeada "Comunidade Lusíada" destinada a cimentar a unidade supra-nacional dos povos que haviam recolhido a influência da língua e da cultura portuguesa.

Em todo este quadro entendia que a presença portuguesa em África poderia ser, não só factor de estabilidade, como lançar a ponte de entendimento para amortecer a confrontação entre blocos raciais extremistas que tenderiam a formar-se.

Lamentando o enfraquecimento da influência britânica (de cuja acção nunca ocultou ser objectivo admirador) o Doutor Salazar previa que, com o rodar do tempo, se moderasse a virulência das atitudes, alcançando-se um momento de compromisso negociador para o qual deveríamos estar preparados. Era isso que justificava a sua política de "aguentar" (opondo a força à força, quando necessário) sem que nunca tivesse defendido a hipótese de vitória militar.

A solução seria sempre política e para isso a necessidade de angariarmos amigos (a converter em potenciais aliados) nos futuros governos da Rodésia do Norte (que veio a ser a Zâmbia) ou do Niassalândia (que veio a ser o Malawi) [1].

Pelas divisões partidárias e enfrentamentos tribais que se registavam, o panorama de Lusaka mostrava-se confuso e era duvidosa a capacidade do Dr. Kaunda para dominar o jogo político interno, assumindo posição de estadista. A futura Zâmbia seria parceiro a acompanhar com atenção e auxiliar nas suas dificuldades de país sem acesso aos oceanos, para não se perderem oportunidades. Mas não parecia ser o interlocutor apropriado para aqueles objectivos de estratégia africana.

Vinha a restar o futuro Malawi que reunia, na visão de Salazar, as condições para se tentar conveniente aproximação.

O Dr. Banda afirmava-se como chefe político incontestado, com personalidade forte e de insuspeitos antecedentes na luta anti-colonial. Não havia choques partidários significantes e o tribalismo não apresentava relevância preocupante. A posição geográfica do país permitia admitir certa moderação pragmática enquanto que o seu potencial humano, que impunha emigração significativa, se apresentava como factor de valorização de outros estados vizinhos.

O Dr. Hastings Banda, embora intérprete de extremismo africano violento, possuía cultura e hábitos em que se patenteava a influência dos padrões britânicos. Era astuto e educado. Reunia todas as condições para vir a ser interlocutor esclarecido, capaz de exercer influência na preservação da paz naquela zona nevrálgica do continente africano.

Toda esta longa exposição conduzia a definir-se um objectivo: apresentar ao líder do futuro Malawi o quadro que me fora traçado e obter a sua colaboração para essa estratégia política.

Ouvi atentamente o que o Doutor Salazar me referiu ao longo de exposição metódica que incompletamente resumo e concordei com a actuação que preconizava. Ficava por saber como isso se realizaria.

Formulei a pergunta e Salazar foi terminante, revelando quanto havia pensado no assunto mas tratando-o como se fosse a coisa mais trivial: "Pois é você quem tem de desempenhar-se de tal missão. Sente-se em África como um africano e não esconde as suas simpatias pelos anseios dos negros. Fez a guerra com coragem mas repete-me, sempre, que só a aceita para se construir a paz. Tem a sua oportunidade".

E acrescentou: "Ou conseguimos isto ou o nosso Ultramar conhecerá uma catástrofe. É do interesse de toda a África evitá-lo. Que me responde?"

Claro que respondi que nunca havia, sequer, visitado o Niassalândia e nunca havia visto o Dr. Banda, cuja personalidade desconhecia. Não sabia, portanto, por que ponta havia de pegar no problema.

Imperturbável, o Presidente Salazar apenas lançou, olhando por cima dos seus meios óculos, um comentário que reproduzo com inteira fidelidade: "Tem graça que eu também não tenho ideia de como isso possa ser. Foi por isso que o chamei a si e lhe expliquei isto tudo. Trate de encontrar a solução. Já se saiu bem de problemas mais complicados". E juntou um comentário que traduzia o carinho que dedicava à minha família: "A sua mulher é que já anda farta disto. Eu sei-o. Espero não lhe criar problemas em casa".

Na imagem: pôr-do-sol em Chamama (Malawi)

Mal podíamos supor, nessa altura, como a Teresa e os meus filhos viriam a adorar o Malawi. Como ali haveríamos de encontrar o calor de amizades inolvidáveis, nas boas e nas más horas que nos esperavam.

Agradeci a confiança. Disse que faria tudo quanto me fosse possível. E fiquei a dar tratos à imaginação.

Assim começou, sem qualquer mérito meu de inventiva, uma nova fase da minha vida e que veio a ser, sem dúvida, a que mais me apaixonou: influenciar o Malawi para uma política africana de convivência, diálogo e entendimento.

Mal podia, então, supor como o Malawi me viria a influenciar a mim (ob. cit., pp. 25-37).


[1] Sobre a situação política referida, desmistifica-se assim o sentido vulgarmente atribuído ao «orgulhosamente sós» de Oliveira de Salazar. Terminantemente o esclarece Franco Nogueira:

«Esta expressão «orgulhosamente sós» logo se transformou num estribilho ou bordão político, invocado por uns como título de nobreza e coragem nacional, por outros como indicativo de isolamento perante o mundo. Mas a expressão não queria dizer que Portugal estivesse só, isolado, sem ajudas. Queria dizer que Portugal estava só na interpretação que dava ao quadro africano e mundial; e às conclusões políticas que tirava» (in Salazar, Livraria Civilização Editora, Vol. VI, p. 8).

Continua

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (i)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Preâmbulo liceal

Natural de Lisboa, Jorge Pereira Jardim chegou a ser denominado o “Lawrence de África”. De facto, aprendeu, durante 22 anos, a “sentir e pensar Moçambique” segundo as mais variadas facetas da sua admirável personalidade, entre as quais se contam a de agrónomo, soldado e diplomata, assim como a de jornalista, piloto aviador e pára-quedista. É hoje, pelo menos para as novas gerações, uma figura praticamente desconhecida em Portugal, quanto mais não seja por ter denunciado em Moçambique, Terra Queimada, os aspectos e os acontecimentos mais sinistros que deram lugar, por via do “processo revolucionário” do pós-25 de Abril de 74, à tão propalada e propagandeada descolonização “exemplar”.

Não admira, pois, que na altura tenha sido apresentado na imprensa nacional e internacional como um homem altamente perigoso, tendo inclusivamente, qual animal a abater, sido perseguido em Portugal sob as instruções de Costa Gomes, mais particularmente em Lisboa, de onde, refugiado na embaixada do Malawi, ensaia uma das mais espectaculares fugas cujo relato, feito pelo próprio, o Liceu não deixará, certamente, de assinalar e dar a conhecer.

Além disso, Jorge Jardim foi também colaborador íntimo de Salazar, mantendo, com aprovação e conhecimento de causa do estadista português, cordiais relações no contexto da África Austral, nomeadamente com o presidente Hastings Kamuzu Banda, do Malawi (1966-1994), e com Kenneth David Kaunda, primeiro presidente da Zâmbia (1964-1991). Não deixa, portanto, de ser pertinente e altamente esclarecedora a liberdade de movimentos com que Jorge Jardim actuaria e realizaria a sua missão no sentido de encontrar uma solução política para a província de Moçambique, conforme, aliás, testemunha o Programa de Lusaka (nascido a 12 de Setembro de 1973) que Jardim tão cuidadosamente tratara de conceber em colaboração com os presidentes da Zâmbia e do Malawi. O autor de Moçambique, Terra Queimada, desconstrói assim, por inteiro, a tese do imobilismo que os historiadores de ontem e de hoje vêm falsamente construindo em torno da política nacional e ultramarina de Oliveira Salazar.

De facto, quem deseje compreender o plano premeditado de feição marxista e revolucionária que incendiou o Ultramar português, deve, antes de mais, começar por valorizar os testemunhos directos e de boa-fé de todos os que procuraram, sincera e patrioticamente, encontrar os meios de salvaguardar a Comunidade Lusíada firmada na unidade supra-nacional dos povos de língua e de cultura portuguesa. Ora, Jorge Jardim foi um desses patriotas cuja missão de outrora esclarece e contribui muito mais para a compreensão de um ciclo histórico do que as dezenas ou as centenas de teses universitárias já ideologicamente condicionadas pela historiografia oficial. E tanto assim é que os livros, especialmente os que revelem conteúdo idêntico ao de Jorge Jardim, já praticamente não se encontram à venda nos supermercados livreiros, como seria de esperar.

Mas há, felizmente, quem ainda os tenha. A verdade, contudo, não tem pressa, se bem que já tarde em vir. Em todo o caso, contribuiremos aqui com a divulgação de algumas passagens de Moçambique, Terra Queimada, título, aliás, que desmente logo à partida não ter sido a revolução comunista de 74 tão incruenta e sanguinária como políticos, jornalistas e universitários pretendem fazer crer perante um povo politicamente refém do socialismo triunfante.

Miguel Bruno Duarte


As todos os que morreram por Moçambique
A queimada africana é imparável e assustadora.

Começa no capim seco que arde em altas labaredas. Corre veloz quando o vento sopra em seu favor. Domina os tandos e assalta as florestas, galgando a encosta das montanhas.

A queimada, esse festival africano do fogo, prolonga-se durante dias e chega a durar semanas.

Vista de longe, pela noite, engana facilmente os olhos pouco afeitos em reconhecê-la. Toma contornos aparentes de grande cidade e parece pontuar sobre a terra a presença civilizadora do homem.

Na verdade, porém, é quase sempre consequência de descuido ou fruto de hábitos ancestrais mantidos em tradição milenária.

É bela na sua corrida infatigável. É terrível na força que desencadeia.

As árvores torcem-se, os animais fogem quanto podem e o fumo eleva-se em barreira que tolda a vista e sufoca a garganta.

Mas por muito que alastre e por mais alto que se erga, acaba sempre por extinguir-se. Os homens é que raro sabem como dominá-la.

Só os mais velhos, donos da Ciência aprendida no mato, a encaram sem temor. Esses sabem que a queimada tem força que não dura. Brilha e queima, mas apaga-se.

Depois, surgem mais fecundas as machambas naquela terra que oculta tesouros. O capim tenro nasce viçoso quando as cinzas se dispersam ao primeiro golpe de vento e regressa nova vida no ciclo infindável que prossegue. Até as árvores rejuvenescem libertas dos ramos secos e inúteis que o fogo carbonizou.

É assim. Foi sempre assim. E continuará a ser sempre assim a grande queimada africana.

Só há perigo e se joga o drama, quando homens que vêm de longe (e por isso se consideram mais civilizados) ateiam o fogo para desvendarem a selva que desconhecem ou para se protegerem dos medos que os assaltam.

No reflectir nocturno dos olhos da gazela julgam adivinhar a proximidade agressiva do leão. Fazem crepitar o lume, que não dominam, e depois assustam-se quando a África lhes responde com a força mágica que desencadearam.

Então, até a terra arde.

Julgando tudo saberem, só por nada terem aprendido, esses homens sem cor assistem impotentes à destruição que provocaram. Não acertam em entender de que lado está o vento e tudo tentam explicar, desculpando-se confusamente para fugirem apressados do braseiro.

Atrás deles deixam a terra queimada e abandonam as vítimas inocentes que a surpresa apanhou desprevenidas.

Essa grande queimada, feita fora do tempo, nada tem de africana mesmo quando em África a ateiam. Dessa, até os sábios velhos do mato têm medo. Essa queima as raízes, faz arder a terra e não permite que o capim espontâneo volte a brotar.

Quem ali viveu intensamente longos anos, a ali deixou a alma presa ao feitiço que inegavelmente existe, não pode esquecer a imagem dessa grande queimada de descolonização que não foi mais do que fogo posto por mãos ignorantes e criminosas. Mãos de gente que não pertencia à África.

Mas as dores tiveram de ser sofridas, sem culpa, pelos africanos de todas as raças atingidas pela mais monstruosa traição que naquelas terras se conheceu.

Essa queimada, desencadeada por incendiários, também acabará por apagar-se.

Na história que os velhos irão repetir, em torno da fogueira que em cada noite se renova, ficará apenas a lembrança dessa horrível tragédia.

Lição para todos à custa do sofrimento de tantos. Lição para os jovens aprenderem e para os filhos deles ensinarem.

Os velhos, os jovens e os filhos que haverão de nascer, têm de recordar (para que isso não possa voltar a acontecer) que os homens que atiçaram essa queimada não tinham cor que os distinguisse. Mas sempre repetirão que não eram homens de África.

Dispersas as cinzas, reparadas as destruições e revolvida a terra queimada, nela voltará a reverdecer a vida que nem os séculos puderam abafar. Os homens serão capazes de encontrar a felicidade que ambicionavam. Em novos horizontes, em novas fórmulas de convívio e sempre no autêntico estilo africano. Mesmo sobre as ruínas. Mesmo sobre a terra queimada.

O chão fecundo, as florestas centenárias, os rios sem margens e o oceano de mil cores esperarão amorosamente as gentes que se foram para que de novo venham unir-se às gentes que ficaram.

E todos juntos reconstruirão a África Nova.

Creio que assim haverá de ser, sem que ninguém atente na cor da pele para melhor se ver a cor da alma.

Em África tudo tem cor mas nada tem uma só cor. Nem os rios, nem as montanhas, nem o mar, nem os animais da selva, nem as terras e nem os homens.

Só o céu conserva sempre o mesmo azul ainda quando nuvens passageiras o ocultem.

Para esse insondável infinito se erguem os olhos esperançados, buscando nele alívio para o drama deixado por homens que de África nada sabiam.

Homens que fizeram de Moçambique a terra queimada que tardará anos em voltar a ser fecunda.

Homens que a África terá de esquecer para, depois, lhes poder perdoar.


Todos têm o direito de saber

Não foram poucas as vezes em que, ao longo dos anos, muitos insistiram comigo para que publicasse as minhas "memórias".

Penso que tais solicitações, amigas ou curiosas, resultavam, sobretudo, do conhecimento impreciso sobre missões que desempenhei com certa auréola de aventureirismo triunfante.

Nunca me aprestei a satisfazer aquele interesse que tinha de aceitar ser justificado pelas referências surgidas quanto à minha presença nos acontecimentos do Congo (hoje Zaire) em 1959 e 1960, à participação que tive na guerra de Angola, às deslocações a Goa antes e depois da ocupação indiana, às tentativas de aproximação com Moscovo e Peking, à intervenção activa nas operações em Moçambique, à ligação com os acontecimentos decorrentes da declaração da independência rodesiana (com as minhas qualificadas visitas a Ian Smith, Verwoerd e Vorster), aos contactos de alto nível com o Malawi, a Zâmbia e outros países africanos, bem como aos esforços realizados para entravar, ou combater, a agressividade da Tanzânia.

Conhecia-se, por outro lado, a minha íntima relação com o Presidente Salazar que me confiara tarefas melindrosas e supunha-se a existência de "segredos de Estado" cuidadosamente protegidos, em que me pertenceria a aliciante missão de "agente especial".

Furtei-me sempre a divulgar as minhas recordações e consegui, mesmo, iludir a insistência incómoda dos meios de informação internacionais que me dispensavam interesse partilhado por alguns orgãos da imprensa portuguesa.

(...) Ocorreram entretanto, acontecimentos dramáticos na vida nacional que me forçaram a rever aquela firme determinação que tinha mantido contra todas as solicitações.

Por tal forma as realidades têm aparecido distorcidas, e de tal modo tem alastrado a poluição informativa, que entendi ser menos próprio conservar silêncio só pela comodidade de não provocar novas reacções por parte daqueles para quem a revelação da verdade possa tornar-se desagradável, acrescendo desse modo os riscos que tenho tido de enfrentar.

Aconteceu, ainda, que as poucas tentativas que realizei para repor a exactidão dos factos depararam com estranha muralha de silêncio na "livre" imprensa portuguesa das mais diversas tendências, para já não falar na comprometida indiferença dos departamentos oficiais.

Confrontei, pois, em sério exame de consciência, a admissível obrigação de guardar segredo daquilo que conheço, com o dever moral, imperioso, de revelar o que a maioria ainda hoje ignora e todos têm, hoje, o direito de saber.

Feita a minha opção, com a serenidade que tenho conseguido manter nestes dois anos em que tantas perseguições sofri, não me foi fácil estabelecer critérios quanto à forma de apresentar mais convenientemente os assuntos.

Nunca pensei ser tão absorvente e tão moroso, o trabalho de ordenar, seleccionar e utilizar os papéis acumulados em tantos anos. Tive mesmo de me isolar em lugar tranquilo para conseguir levar a cabo essa tarefa e para que o resultado pudesse ser honesto e apresentar alguma utilidade.

No meio de tudo isto até aconteceu que vulgares ladrões me roubaram, por duas vezes, documentos e rascunhos, tentando a habitual "chantage" acompanhada das clássicas ameaças. Claro que se acobertaram sob a capa de intenções políticas e certamente que não foi a primeira vez, como também não será a última, em que a política serviu de capa a ladrões.

Mas quem não teve medo das emboscadas no mato, não se iria impressionar com a hipótese de enfrentar gatunos na volta de qualquer esquina.

O certo é que em nada me prejudicaram porque os documentos já estavam prudentemente microfilmados, a bom recato, e, por isso, posso agora reproduzi-los. Quanto aos "segredos" que pensassem descobrir irão encontrá-los, divulgados, nos livros que publicarei.

Na imagem: Jorge Jardim

Refiro este incidente porque ele mais me determinou a revelar a verdade que, afinal, parece serem muitos a recear. Não tive dificuldades em identificar a origem do roubo e isso veio libertar-me de algumas limitações que sobre mim poderiam pesar.

Na impossibilidade de tudo condensar num único livro, e de neste seguir ordem cronológica em que os assuntos se encavalitariam, preferi agrupar estas revelações numa curta série editorial em que os problemas possam individualizar-se melhor, com mais claro seguimento.

Dei compreensível prioridade ao caso da descolonização de Moçambique a que este primeiro livro é dedicado.

(...) Neste quadro se inserem muitos aspectos inéditos da vida nacional em que projecta a figura de estadista de Salazar que a mediocridade e o ódio, tentam hoje denegrir. A sua esclarecida visão dos problemas e a capacidade para se adaptar às realidades, creio que ficarão patentes, destruindo a tese do imobilismo atrofiador que em seu torno se procurou tecer.

Admito que nessa análise me possa influenciar a devotada admiração que a Salazar dediquei e se forjou ao longo de mais de vinte anos de estreita colaboração de que nasceu uma íntima amizade. Mas os documentos e testemunhos que possuo, julgo serem objectivamente irrespondíveis e reflectem a sua verdadeira imagem humana e política.

Tudo será publicado a seu tempo. E sem tardança.

Para já, ocupar-me-ei, neste livro, do triste e covarde abandono de Moçambique (in Moçambique, Terra Queimada, Editorial Intervenção, 1976, pp. 11-20).

Continua