terça-feira, 4 de setembro de 2012

Moçambique, terra queimada (x)

Escrito por Jorge Pereira Jardim



Na imagem: Carmo Jardim, instrutora dos grupos Especiais Páraquedistas

Preocupação em Lusaka

«(…) apreensões fui encontrar em Lusaka quando ali me desloquei em 10 de Julho, conforme combinara com Mark Chona. Levei comigo minha mulher e a Carmo, enquanto que Pombeiro foi acompanhado pela mulher.

(…) Entretanto, na “State House”, Mark Chona e Peter Kassanda insistiam em assegurar-nos que o nosso “Programa de Lusaka” continuava inteiramente actualizado, como base e norma para as negociações. Recomendavam-nos que diligenciássemos organizar a importante minoria branca moçambicana e os africanos meus amigos, em termos de se dispor de uma força válida para o diálogo com a “Frelimo” que, em caso de necessidade, pudesse vencer o imobilismo de Lisboa. A visita do Dr. Mário Soares tinha-os desiludido e as declarações do Dr. Soares de Melo, em Moçambique, eram tidas como preocupantes.

Como evolução importante sobre os esquemas discutidos no passado, disseram-nos que, depois de tudo o que acontecera, a independência não podia ser discutida e seria inaceitável submetê-la a referendo. Com isso só se perderia tempo e poderia agravar-se o caos, com enfrentamentos tribais que era indispensável evitar.

Foi sublinhado, com ênfase, que a “Frelimo”, desejaria uma evolução que reunisse todos os valores que Moçambique pudesse mobilizar. Com o propósito dominante de tornar viável o governo do país, na fase transitória, e de lançar as bases para uma fecunda colaboração futura, havia que afastar preocupações ideológicas, que esquecer as atitudes assumidas no passado e não olhar a raças dos que estivessem dispostos a esse trabalho comum.

Aceite ou proclamada a independência, estaria a “Frelimo” desde logo disposta a cessar as operações militares e competiria, então, a todos os moçambicanos definirem, pelo voto, as estruturas nacionais que desejassem. Discutimos o tempo que seria indispensável para se atingir essa fase e concluímos que, trabalhando com afinco e não se perdendo mais tempo, poderíamos ter a independência consolidada por alturas de Outubro de 1976. Para isso, era indispensável levar Lisboa a passos imediatos ou fazer-lhe saber que os daríamos, se não tomasse a iniciativa.

Apreciámos a situação confusa que reinava em Portugal com distintos centros de decisão (Junta de Salvação Nacional, Governo MFA) enfrentando-se conflitivamente. Para agravar a situação dava-se, por esses dias, a demissão do governo provisório a que presidia o Prof. Palma Carlos.

Concluímos que o centro de decisão mais válido residia no “MFA” e fiquei de lhes fazer chegar as nossas recomendações.

Pequeno almoço com Kaunda
No dia 13 reunimo-nos com o Dr. Kaunda, em esforço matutino (...).

(...) Resumimos o que tratáramos e deu-nos o melhor encorajamento, confiando em que pudéssemos obter, finalmente, os resultados desejados. (...)

Renovou a oferta para que a minha família se acolhesse à hospitalidade da Zâmbia assegurando que não haveria dificuldade em instalá-la convenientemente apesar da dimensão do agregado familiar que minha mulher lhe recordou. Declinámos o amigo convite dizendo quanto nos sentíamos bem no Malawi que, pela proximidade com a Beira, nos permitia ligações mais rápidas e frequentes com os filhos que ainda permaneciam em Moçambique.

Na imagem: Carmo Jardim

Nessa mesma manhã regressámos a Blantyre e a Carmo, que fizera amizade com as tripulações italianas ao serviço da "Zâmbia Airways", realizou toda a viagem na cabina de pilotagem falando pela rádio com Tete e com a Beira. Os controladores parece que ficaram surpreendidos ao inteirarem-se de que continuava a minha liberdade de movimentos entre os países africanos quando o noticiário, da já orquestrada imprensa, referia coisas bem diversas a meu respeito.

Campanha de agitação e mentiras
Em 15 de Julho, eu havia entregue ao Maj. Varela, em Blantyre, uma declaração assinada, destinada aos jornais moçambicanos e às agências informativas, distribuindo paralelamente uma tradução do texto, em inglês.

Nela desmentia que estivesse ligado à imaginária incursão de mercenários em Vila Pery, que promovesse a agitação registada entre os trabalhadores da Beira ou os actos terroristas assinalados nalgumas regiões. Negava, sobretudo, pretender uma independência unilateral sob o domínio da minoria branca.

A minha declaração não teve, no entanto, a mesma divulgação que haviam tido as calúnias contra mim levantadas. Houve jornais que só a publicaram, com atraso, depois da intervenção energética de oficiais amigos.

Como indício revelador da maquinação urdida, é útil recordar crónica proveniente de Lourenço Marques e que o “Expresso” publicou na edição de 20 de Julho. Essa notável peça deve-se aos correspondentes Areosa Pena e Paulo Chauque, conhecidos pela sua associação íntima com os “democratas de Moçambique”.

Num notável prodígio de imaginação escrevia-se concretamente:

“A acção dos mercenários brancos, enquadrando grupos africanos armados e enviados por Jorge jardim para provocar o terror no distrito de Vila Pery, de acordo com um comunicado do Comando Militar do sector, foi neutralizado, segundo apurámos, devido à pronta acção do Exército Português e dos nacionalistas da Frelimo”.

E acrescentava em pura fantasia:

“De acordo com um contacto telefónico efectuado pelo “Expresso” com aquela cidade do centro de Moçambique, a partir da comunicação feita às Forças Armadas através de uma autoridade civil do distrito, o Exército Português e os nacionalistas da Frelimo passaram à perseguição dos mercenários, unidos numa aliança táctica contra o inimigo comum, actuando cada uma das forças em áreas separadas”.

A tal coluna de mercenários desapareceu misteriosamente e nunca mais alguém ouviu falar nela. Deve-se isso à simples razão de nunca ter existido.

Manifestamente que estava preparada toda uma farsa mistificadora que visava atingir-me.

O mais notável é que essa campanha viria a ser seguida, poucos dias depois, por actuação oficial determinada em Lisboa. Ficaria demonstrada a ligação entre todos os comparsas que uma vontade superior, há muito, comandava.

Deslocação à Swazilândia

Cumprindo o planeamento combinado desloquei-me à Swazilândia onde tinha encontro aprazado com pessoas de Lourenço Marques e da região sul de Moçambique.

Ali, em Matzapa, recebi (dias a fio) os que vieram procurar-me.

Todas as tendências e todos os interesses estiveram representados. Nem faltaram, sequer, militantes da “Frelimo”, que me conheciam de longa data, buscando uma palavra de orientação.

Informaram-me de que o ambiente se deteriorava em termos ainda mais preocupantes do que eu pudesse conceber. A incapacidade governativa era catastrófica e a propaganda desencadeada pelos “democratas” conduzia a um clima de pânico que fazia as pessoas avizinharem-se do desespero.

Revelei o nosso “Programa de Lusaka”, dei a conhecer as garantias que recebera e anunciei os nossos propósitos. Ao cabo de horas de argumentação, consegui o apoio e a confiança dos meus interlocutores. Aceitavam colaborar no esquema proposto e movimentar forças para uma coligação nacional no governo de Moçambique independente. Mas estavam desorientados e receosos.

A esta perigosa situação se havia chegado ao cabo de três meses de regime descolonizador.

Também ali me foi dado saber que Joana Simeão havia regressado de Portugal para conduzir um agrupamento político (a “Frecomo”) quem, com apoio dominante no tribalismo macúa, pretendia opor-se à influência da "Frelimo". Dispunha de largos meios financeiros que esbanjava em instalação de secretarias e em deslocação dos seus associados. Mantinha largas conversas telefónicas como o Gen. Costa Gomes (como fez de Quelimane e de casa de pessoa identificada) usando linguagem de intimidade que não consentia dúvidas sobre a genuidade dos contactos.

Comecei a entender o jogo que o enigmático general pretendia levar a cabo.

Pretendia-se o enfrentamento tribal, o desespero dos brancos e a frustração dos militares para se impor uma solução que todos aceitariam como salvadora.

Só ainda não entendia onde se queria chegar. (…)

Rousa Coutinho não pôde encontrar-se comigo

(...) Na manhã imediata, [Álvaro Récio] tomou o pequeno almoço na residência oficial do governador, com o Com. Rosa Coutinho e sua mulher.

Vieram à conversa acusações que já corriam sobre a filiação comunista de Rosa Coutinho que as repudiou com indignação. Afirmou que estaria disposto a pagar bem, só para ver a ficha da "PIDE" em que tal constasse. A senhora quase se emocionou ao gritar: "Oh Récio. Você está a ver-nos comunistas? Até dizem que o meu marido já o era há 14 anos. Veja bem onde pode chegar a calúnia!"

O Álvaro Récio concordou com o casal e eu também haveria concordado, nessa altura, se houvesse estado presente. Nada, no contacto com Rosa Coutinho, poderia levar a admiti-lo. Nem sequer usava o tipo de linguagem ou argumentação que, sem dificuldade, permite caracterizar os comunistas.

Por outro lado, o desejo de recorrer ao Dr. Kaunda para estabelecer contacto com movimentos nacionalistas angolanos, não levava a presumir qualquer predilecção pelo "MPLA".

Quando a senhora se ausentou, Álvaro Récio transmitiu a minha resposta.

Para assombro do bem intencionado emissário, o Com. Rosa Coutinho ficou alterado e quase se descontrolou ao dizer que não queria quaisquer ligações comigo, que já haviam progredido bastante nos contactos desejados e que até dispunham, localmente, de "uma espécie de jardim". Pediu ao Récio que não lhe criasse problemas e mencionou-lhe que, entretanto, havia estado em Lisboa.

O Álvaro Récio, segundo me descreveu no regresso, ficou transtornado com tal reacção. Recordou-lhe que o que fizera fora por expresso pedido dele, que bom trabalho tivera a convencer-me e que não parecia acertado abandonar as diligências efectuadas por iniciativa do próprio Rosa Coutinho.

Este não negou que assim tivesse sido, mas manteve a mesma reacção, com a preocupação repetida de "evitar complicações".

Na imagem: Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho e Rosa Coutinho

Álvaro Récio ficou sem dúvida de que Rosa Coutinho (promovido a almirante logo a seguir ao "25 de abril") tinha recebido instruções expressas em Lisboa. Só isso o poderia ter feito alterar as suas intenções, reveladas apenas semanas antes.

Certamente que Rosa Coutinho não recebera essas instruções do Gen. Spínola com o qual afirmava não estar nas melhores relações. Sabia-se, porém, da sua estreita ligação com o Gen. Costa Gomes que veio a confimar-se quando da crise de 28 de Setembro e a revelar-se, abertamente, nos acontecimentos que se lhe seguiram. Por outro lado, o afastamento da Zâmbia do circuito mediador havia sido evidenciado como patente preocupação de Costa Gomes nos "cortes" da minha carta para o Dr Kaunda, conforme já anteiormente doccumentei.

A alteração do propósito de Rosa Coutinho de se encontar comigo, apresentava singular paralelismo com o cancelamento do encontro, em Madrid, desejado por Otelo Saraiva de Carvalho.

O mesmo cérebro, frio e metódico, exercia a sua influência para impedir que a desccolonização pudesse ser afastada dos rumos que havia planeado.

Estávamos em Agosto. Nessa altura, Já Melo Antunes aparecia como o negociador qualificado da descolonização. Haveria de vir a ser mais tarde, depois de 11 de Novembro de 1975, o defensor do reconhecimento do governo do "MPLA", antecipando-se, mesmo, à ocupação cubana e soviética.

Por isso não aceitara ser nomeado para Moçambique. Tinha outra missão a cumprir. Levou-a a cabo com êxito, apoiado no Gen. Costa Gomes que viria a tomar a atitude de reconhecer oficialmente esse regime, quando estava ausente de Lisboa o Primeiro-Ministro Pinheiro de Azevedo e outros membros do governo que a tal decisão igualmente se opunham.

É difícil entender a ingenuidade das declarações do Dr. Almeida Santos, que não considero tolo, exaltando os acordos do Alvor quando, nessa altura, a entrega de Angola estava já decidida. Como tinha sido planeado, impedindo-se para tanto o encontro de Rosa Coutinho com Kaunda.

Sem que se possa atenuar a tremenda responsabilidade do "Almirante Vermelho" na tragédia que Angola veio a sofrer, haverá de reconhecer-se que foi habilmente manipulado desviando-o dos seus propósitos iniciais.

Para isso, devem ter-se reacendido os compreensíveis rancores que conservava em resultado dos abusos, físicos e morais, de que há anos fora vítima em Kinshasa, às mãos da soldadesca.

Não foi capaz de esquecer. Não foi capaz de resistir ao anseio de vingança.

Como homem, compreendo-o. Mas não tinha de ser Angola inteira a pagar pelo que outros lhe haviam feito. (...)

O Kissinger africano

Embrenhámo-nos dois dias em intensas conversas com Mark Chona examinando, como habitualmente, a situação.

Contou-nos que havia acompanhado Joaquim Chissano a New York e que, no regresso, se haviam separado para permitir a Mark Chona passar rapidamente por Lisboa onde estabelecera contactos com os responsáveis. Vinha preocupado com a falta de preparação com que deparara.

Descreveu-me o encontro que tivera com o Dr. Mário Saores e com o Dr. Almeida Santos. Em seu entender eram completamente ignorantes dos problemas de África e não entendia como o Dr. Almeida Santos podia ter estado tanto tempo em Moçambique sem nada ter assimilado das realidades.

Mário Soares havia sido particularmente insistente a meu respeito, mencionando que me consideravam como "homem perigoso e capaz de tudo para realizar os seu propósitos". Verdade seja que Almeida Santos não pronunciara sequer uma palavra de comentário a tais diatribes e nada dissera que me atingisse.

Quase que divertido, Mark Chona relatou-nos que tinha tomado a posição de tudo ouvir sem abrir a boca. Fizera, apenas, o clássico movimento de sobracenlhas, tipicamente africano, que só pode ser interpretado (por quem o saiba) como signifficando "estou a ouvir". Parecera-lhe que Mário Soares havia tomado isso como atitude de concordância e que se sentira encorajado para insistir nos ataques.

Mark Chona assegurou-nos que a Zâmbia nunca seria sensível a tais pressões, tanto mais que considerava como "infantil" o incidente com o Malawi que se encerrara com nítido desprestígio para os portugueses.

Acrescentou que fizera viagem com Bill Mayer (vice-presidente executivo do "Bank of América" para qualquer zona de África) e que este lhe referira, por me conhecer bem do "Commercial Bank of Malawi", ser-lhe impossível acreditar nas histórias postas a correr a meu respeito. Mark Chona respondera-lhe que o Governo Zambiano também não dava credibilidade a tais acusações e que Bill o poderia repetir a quem quisesse. Disso, na verdade, já me havia chegado eco.

O notável assistente do Presidente Kaunda tinha uma capacidade de apreender os problemas que se apresentava invulgar e uma forma realista de actuar que lhe permitia encontrar soluções mesmo quando parecia perdido.

Daí resultou que o classificasse como "Kissinger africano", até pela rapidez como se movimentava, estando presente em toda a parte nos momentos oportunos.

O nosso "Kissinger" referiu-nos ter entendido que pouco havia a esperar da diplomacia clássica e que, como lhe tínhamos referido, seria ao "MFA" que se encontraria o interlocutor válido. Não citou nomes, mas não era preciso ser muito astuto para compreender que o Maj. Melo Antunes havia tomado a dianteira.

Estava confiado em que por essa via encontrassem as soluções desejadas e esperava que a descolonização de Moçambique pudesse oferecer um exemplo único de multi-racialidade e tolerância que influenciaria decisivamente a posição da África do Sul e da Rodésia, demonstrando às minorias brancas mais esclarecidas que nada tinham a temer da aceitação de governos de dominância africana. Parecia-lhe ser esta a melhor forma de combater, sem violência, o racismo daquele país que resultava afinal, do temor quanto ao futuro. O que acontecera em Moçambique seria, portanto, decisivo.

Quando lhe referimos que tínhamos realizado contactos com Pretória, ficcou encantado. Era excelente que acompanhassem a nossa evolução pois um dia haveria de chegar em que com eles se estabelecesse o diálogo e o caso de Moçambique representaria o melhor argumento.

Impressiona recordar, hoje, as ilusões de Mark Chona (e as nossas) porque Moçambique acabou por ser o exemplo oposto e por influenciar, compreensivelmente, a intransigência da minoria branca.

O Maj. Melo Antunes com o argumento "terceiro-mundista" e a proposição do socialismo argelino (que consistia em fazer Portugal ainda mais pobre, para se poder sentar no banco dos miseráveis) aparentava uma genuidade a que os africanos eram sensíveis a isso era facilitado pela impreparação de Mário Soares, acompanhada pela silenciosa ignorância de Almeida Santos que Mark Chona nos denunciava.

Junto a Melo Antunes estava o apoio de Costa Gomes, cujos propósitos eram, há muito, claros.

Verdade seja que, depois da "descolonização original" nenhum país africano abriu embaixada em Lisboa a não ser a Zâmbia, que para ali remeteu o nosso amigo Chimpampata. Do "terceiro-mundismo" apregoado por Melo Antunes, que, dele se pretendia arvorar em campeão, só ficou essa presença solitária.

Com alguns argumentos confusos, contra ao que nele era hábito, Mark Chona explicou o atraso da publicação da minha entrevista no "Times of Zâmbia". Também me assegurou que a minha carta para Samora Machel havia sido excelente, mas que teríamos de aguardar momento oportuno para um resposta. Era, para mim, evidente que alguma coisa de anormal acontecia.

Revelou-nos que o Presidente Kaunda se ausentara do país para uma reunião do mais alto nível em que o caso de Moçambique ficaria definitivamente decidido. Esperava que, dentro de muito poucos dias, tivesse lugar um encontro em Lusaka, com representantes portugueses credenciados para uma solução final. Não deixaria de contactar connosco para que fôssemos dos primeiros a conhecer a fórmula estabelecida.

No último encontro que tivemos (em 30 de Agosto) insisti em que a situação em Moçambique poderia avizinhar-se de confrontação dramática, tal era o estado de desespero das pessoas que não podíamos conter por mais tempo. As provocações multiplicavam-se e a minoria branca oscilava entre a fuga e a violência descontrolada. Ninguém os podia acusar por isso, ao cabo de quatro meses de um clima de agitação que minava as vontades mais fortes e melhor intencionadas. (...)

"Há que abater Melo Antunes"

O Gen. Spínola encontrava-se num estado de grande depressão. Chegara ao ponto de chorar abertamente durante uma das audiências. Sentia-se que estava submetido às maiores pressões contra as quais mal podia reagir. Desabafara afirmando que estava "rodeado por covardes e traidores".

Contou toda a história das negociações, afirmando que nunca transigiria com o que lhe queriam impor. Os próprios ministros Mário Soares e Almeida Santos, que os emissários viram sem lhes falar, pareciam acabrunhados.

Quando se mencionou o nome do Maj. Melo Antunes, o Gen. Spínola não se conteve gritando que "esse é um comunista, não tenho já dúvidas a tal respeito".

Referiram a possibilidade de ele ser nomeado para Moçambique (como os jornais haviam largamente noticiado) e o Presidente da República acrescentou: "Se isso acontecer há que abatê-lo. Têm três dias para lhe darem um tiro na cabeça".

Penso que a ninguém ocorreu objectar que seria mais simples não chegar a nomeá-lo, uma vez que essa prerrogativa pertencia ao Chefe de Estado.

Ainda mais simples teria sido prendê-lo em vez de oficiais considerados patriotas (como o Ten. Cor. Alexandre Lousada, o Com. Almeida e Costa e o Maj. Casanova Ferreira) aceitarem fazer parte do séquito de um "comunista" na sua triunfalista deslocação a Lusaka.

Ambiente golpista

Face a esta situação é compreensível que os emissários regressassem de Lisboa em estado de desespero e dispostos a todos os extremos.

A situação agravava-se, como eu previra, confirmando os sucessivos alertas dados em Lusaka e as claras advertências contidas na minha carta, de 31 de Julho, para Samora Machel.

Gomes dos Santos assegurou-me dispor de sólidos apoios financeiros e entendia não poder aguardar mais tempo, continuando a confiar-se nas pessoas com quem eu mantinha ligação. Em seu parecer tinha chegado a altura de recorrer à força para fazer escutar a voz dos moçambicanos que corriam o sério risco de serem abandonados à sua sorte.

Diligenciei serená-lo, fazendo ver que os métodos revolucionários, naquela altura, não conduziriam a nada de positivo e só podiam provocar retaliações sobre a população indefesa, dando aos extremistas o pretexto desejado para arrastarem a "FRELIMO" para uma política de endurecimento e intransigência.

Em meu entender, no campo militar, uma revolta representaria loucura destinada ao insucesso. A retirada portuguesa dos pontos vitais concedia à "Frelimo" uma dominância que se somava ao seu controle, no mato, de amplas zonas do território. Ninguém apoiaria uma rebelião civil-militar (estigmatizada pela aparência de buscar o domínio pela minoria europeia) e estava certo de que nem a República da África do Sul, nem a Rodésia desejariam agravar os seus problemas, prestando qualquer apoio. Tentariam, mesmo para além dos limites previsíveis, entender-se com o novo regime e tardariam muitos meses em reconhecerem o assalto que contra elas se preparava.

Sem apoio externo, sem compreensão portuguesa e sem auxílio de ninguém, era impossível manter uma confrontação com a "Frelimo" mesmo que, na hipótese mais optmista, a rebelião tivesse êxito. Ao mesmo tempo haveria que pensar-se na capacidade de retaliação das massas africanas, excitadas, contra os núcleos urbanos (todos rodeados por cinturas ameaçadoras) e contra os colonos dispersos pelo interior que seria inviável proteger.

As próprias acções terroristas selectivas, preconizadas por alguns, afiguravam-se-me condenáveis. A capacidade de resposta era tremenda e havia que meditar nas vítimas inocentes que o tal provocaria.

Os meus esforços apaziguadores foram, logo de seguida, afectados, quando nos vieram trazer os jornais sul-africanos com as primeiras notícias sobre o próximo encontro, em Lusaka, entre as delegações portuguesa e da "Frelimo".

Em telegrama de Dar-es-Salaam atribuíam-se a Samora Machel declarações segundo as quais essa reunião, a iniciar no dia 5 de Setembro, se limitaria a concretizar a transferência de poderes. Tudo já estaria negociado e acordado.

Efectivamente, já o estava há semanas, em entendimento entre Melo Antunes e o sector extremista da "Frelimo". Manobraram coordenadamente as próprias fórmulas de transigência que Mário Soares e Almeida Santos haviam proposto e foram substituídas por outras mais radicais. Na corrida das concessões haviam sido largamente ultrapassadas por Melo Antunes.

As parangonas com que essa capitulação era anunciada nos jornais, tornavam o ambiente escaldante entre os amigos que entravam pelo quarto, de roldão. Sentiam-se traídos e dispostos a adoptarem, imediatamente, entre o abandono do país ou um acto de desespero.

Pelos ecos que chegavam a Johannesburg, onde meu telefone não parava um momento, avaliei o que se passaria em Moçambique.

Continuei a dilegenciar manter a serenidade (apesar da perturbação que também me assaltava) e a recomendar que evitassem qualquer atitude menos ponderada.

O capitalismo em Moçambique
Por autêntica e surpreendente coincidência, o industrial e financeiro António Champalimaud chegava nessa altura a Johannesburg, instalando-se no mesmo hotel em que eu me encontrava.

Vinha da Europa e deslocava-se, com curta demora, a Moçambique, onde se iria ocupar dos vultuosos empreendimentos que ali tinha. Encontrámo-nos, por mero acaso, na sala de jantar.

Havíamos tido estreitas relações de trabalho dado que eu administrara o seu grupo de empresas em Moçambique, vindo a afastar-me voluntariamente por divergência de critérios. Isso, porém, não havia afectado a nossa ligação pessoal que vinha desde os bancos da escola.

Nunca estivemos associados em propósitos políticos e nem nunca vislumbrei essa tendência em António Champalimaud, sempre absorvido por actividades para que o arrastava a sua apaixonada vocação industrial. O que a imprensa, nacional ou estrangeira, publicou sobre os nossos pretensos planos políticos, não passsou de especulação urdida pelos que me queriam apresentar como agente do capitalismo e colonialismo.

Na imagem: António Champalimaud

É certo que trabalhei em importantes grupos capitalistas e creio que o fiz com a eficiência que se impunha. Mas nunca ocultei a minha antipatia pelas estruturas monopolistas a que o capitalismo tantas vezes conduz. Não transigia com os defeitos do sistema, mas não deixava de reconhecer as vantagens que apresentava, sobretudo em países carecidos de capacidade empresarial e de meios financeiros próprios.

A experiência de "participação socializante" que, com tanto êxito foi tentada no Malawi, era a que me parecia mais apropriada para o caso moçambicano. Acompanhei activamente o Dr. Banda na edificação dessa fórmula em que se conservava, ao grande capital, participação, dominante ou significativa, nos empreendimentos considerados essenciais, mas em que as instituições locais se associavam com influência progressivamente crescente na condução das empresas.

Por este caminho evitava-se a possibilidade do capitalismo se impor como força opressora ou, mesmo, de evitar vias de pressão.

Aliás, não creio que seja do interesse das próprias estruturas capitalistas praticarem tais desmandos e confiava em que, seguindo o exemplo do Malawi, pudéssemos contar em Moçambique com colaboração do capitalismo esclarecido para reconstrução e fomento do país.

António Champalimaud (há que reconhecê-lo e afirmá-lo) tinha marcada predilecção por Moçambique que se poderia dizer que "amava à sua maneira", parafraseando palavras do Dr. Almeida Santos. Este, aliás, trabalhara comigo para essas empresas com um zelo profissional em que nunca descortinei indícios de aversão pelo capitalismo ou colonialismo que tão veementemente viria a atacar.

O que estou, é em posição de garantir que os avultados lucros angariados em Moçambique pelo "grupo Champalimaud", foram ali reinvestidos, recorrendo-me mesmo ao reforço da sua vasta capacidade de crédito externo para lançar novos empreendimentos. Era essa a posição do "grupo" quando ocorreu o "25 de Abril".

As Forças Armandas: bode expiatório
Conversámos longamente, essa noite, no seu quarto com a presença de um dos seus colaboradores.

Aquilo que me contou confirmava, inteiramente, as informações que de diversas origens me chegavam. Gomes dos Santos não tinha, em nada, exagerado quando me descrevera a situação em Lisboa.

O Gen. Spínola encontrava-se sob o completo domínio de influências em que se destacava a do Gen. Costa Gomes no qual continuaria a confiar, cegamente, até às vésperas de resignar do seu cargo. Quando era prevenido para, ao menos, se acautelar, dava invariável resposta de que "o Chico não pode ser desleal comigo". Acreditava numa camaradagem de dezenas de anos que o aproveitou até ao fim, como já anteriormente, fizera com Marcello Caetano.

Já no exílio, o Gen. Spínola viria a revelar, em Genève, que apenas poucos dias antes do 28 de Setembro tivera provas da deslealdade de Costa Gomes e, mais ainda, da sua premeditada actuação pró-comunista que, afinal, há muito vinha desenvolvendo.

Quando os projectos de acordo com a "Frelimo", vindos de Dar-es-Salaam lhe foram apresentados, o Gen. Spínola reagira muito vivamente, afirmando que nunca os assinaria. Foi-lhe então apresentado o argumento de que as Forças Armadas, em Moçambique, não estavam sequer dispostas a manterem as posições que ainda conservavam e que havia o risco de se verificar a deserção de unidades para a "Frelimo" (como alguns casos já se se haviam registado) acabando tudo numa vergonhosa capitulação. Fazendo um acordo sempre se salvariam as aparências.

O velho soldado chorou. Nunca esperara enfrentar tal situação no termo de uma carreira militar honrosa. O Gen. Costa Gomes, chefe do Estado Maior General, confirmava-lhe que assim era. Não havia opção entre um acordo e a capitulação.

O Gen. Spínola pedira, então, que ao menos passassem a cláusulas secretas, alguns dos pontos mais humilhantes. Referiam-se, concretamente, ao direito de veto da "Frelimo" sobre os nomes a indicar por Lisboa para o governo de transição e à faculdade de a "Frelimo" se pronunciar sobre a designação do Alto Comissário.

O que não foi dito ao Gen. Spínola, por quem tinha o dever de o informar, é que as tropas moçambicanas (representando a maioria dos efectivos) estavam dispostas a cumprir o seu dever e que nisso eram acompanhadas por muitas outras unidades como os "comandos" de Montepuez, os páraquedistas e a Força Aérea.

Também ninguém lhe referiu que a frustração de certas unidades tinha sido resultado dos meses vividos, depois da revolução, sem descortinarem termo para a anarquia que alastrava e sem serem informadas das possibilidades de uma solução para a guerra que continuavam a enfrentar. Oficiais milicianos, de formação comunista encarregavam-se de explorar essa frustração que havia sido cuidadosamente provocada.

Melo Antunes poderia aparecer, nesse quadro, como o homem que evitava o pior.

As Forças Armadas que, declaradamente, tinham lançado o "Movimento" para não se converterem em "bode expiatório" do colonialismo, acabaram por converter-se no "bode expiatório" da descolonização (ob. cit., pp. 276-278; 280-281; 286-288; 318-320; 334-336; 338-343).

Continua

domingo, 26 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (ix)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Perseguição e atropelos
Durante os 23 dias da minha reclusão na embaixada, muito havia acontecido.

Acompanhei isso pelos jornais, pelo écran do televisor e pelas informações que me chegavam. Mas certos aspectos só os vim a reconstituir e relacionar, posteriormente.

Constituíra-se o primeiro governo provisório português, sob a honrada presidência do Prof. Adelino da Palma Carlos que viria a demitir-se, em meio de Julho, afirmando não dispor de poderes para governar.

Governo Provisório em Moçambique

Almeida Santos ocupara a inovada pasta da Coordenação Interterritorial, com responsabilidade de conduzir a acção descolonizadora, e nela haveria de sobreviver ao longo dos sucessivos governos (cada vez mais pró-comunistas) de Vasco Gonçalves, realizando acção que não surpreendeu ninguém e que para sempre o responsabilizará. Só viria, mais de um ano volvido, a abandonar Vasco Gonçalves, num gesto de dignidade tardia que lhe permitiu continuar no governo, em novo cargo.

Em meteórica viagem a Angola e Moçambique, Almeida Santos fizera democráticas sondagens às preferências locais, nada ficando a dever ao mais puro estilo colonialista. Os acolhimentos populares que recebeu não foram propiciadores e nalguns ensejos teve de buscar a porta de saída mais segura.

Julgo que, ao menos, foi sincero e realista quando, nalguns encontros, aconselhou os brancos a retirarem os haveres e o físico, já que ninguém poderia responsabilizar-se pelo que aconteceria depois da independência que inevitavelmente se avizinhava. Isso foi dito a pessoas concretas e identificadas e disso deu exemplo com as precauções que tomou (retirando o mais que pôde) e foram publicamente conhecidas com escândalo. Para além das transferências “legais”, oportunamente realizadas e algumas delas documentáveis insofismavelmente, tentou ampliar essas providências, já muito depois de ser ministro. Disponho da identificação da pessoa que utilizou como intermediário e do testemunho de quem proporcionou o contacto.

Oficiais do “MFA” detectaram por outro lado, segundo directamente me referiram, avultados movimentos suspeitos de capitais em que o Dr. Almeida Santos estaria envolvido. Chegou mesmo a ser organizado processo. Mas nunca teve seguimento.

Mas o pior não havia de ser isso.

Fiel ao apadrinhamento do Gen. Costa Gomes no seu acesso às cadeiras do governo, o novo ministro conseguiu afastar a nomeação do Gen. Silvino Silvério Marques para governador-geral de Moçambique. Cancelou-se a decisão que o Gen. Spínola, cara a cara, me havia confirmado haver sido tomada pela Junta de Salvação Nacional. Silvino Silvério Marques foi atirado para a fogueira de Angola, onde o seu amor por aquelas gentes o sacrificaria numa missão que Lisboa tornava irrealizável.

Para Moçambique foi imposto o Dr. Soares de Melo.

Tratava-se de “democrata” convicto. Amigo e homem de confiança de Almeida Santos. Caracterizado pela mais evidente incapacidade governativa.

Viria a demitir-se poucas semanas depois, tendo conseguido estabelecer inimaginável grau de confusionismo e arrastar o território para o pânico e para o caos.

Correspondia isso ao planeamento delineado e que adiante referirei.

Para tal havia sido indispensável arredar a presença do Gen. Silvino Silvério Marques cuja honestidade se temia.

Acendia-se o primeiro fogacho da grande queimada.

Um advogado de Lourenço Marques riscara o primeiro fósforo…

No acto de posse dos dois governadores-gerais, em 11 de Junho, o Presidente da República pronunciara um excelente discurso doutrinário em que continuava a sustentar a tese da autodeterminação, evoluindo para fórmulas mais realísticas do que as que se continham em “Portugal e o Futuro”.

De forma categórica proclamava:

“Poderão, pois, estar tranquilos os africanos que se mantiveram neutros, porque não lhes será negado, por essa razão, o direito de optar. Poderão estar tranquilos os africanos que se nos confiaram e ao nosso lado combateram, tendo já feito a sua opção. E poderão estar tranquilos os europeus que chamam à África a sua terra a ali se sentem cidadãos como quaisquer outros; não os abandonaremos na cobarde procura do fácil e na demagógica busca da popularidade”.

Não creio que o Gen. Spínola mentisse conscientemente. Tudo o que se passou, de então até hoje, evidencia, no entanto, como milhões de pessoas foram traídas por essas palavras.

Quantos dramas elas provocaram.

O ministro Almeida Santos proferiu, no acto, um discurso empolgante de que parece útil recortar alguns passos mais significativos, começando pela saudação ao Gen. António de Spínola:

“Saudação que, sendo dirigida a V. Ex.ª, Senhor Presidente da República, é como que dirigida ao redimido povo português, que V. Ex.ª, lidimamente, representa e encarna. Não creio que a nossa história ofereça outros momentos – se é que oferece algum – em que com tanta homogeneidade de sentimentos o povo se tenha identificado com o seu Chefe. É V. Ex.ª a pessoa e o magistrado para que convergem, aí se encontrando, as aspirações, as ansiedades e as esperanças dos portugueses”.

Por si só, estas declarações traduziam o endosso, aliás natural para um membro do governo, de toda a orientação e das garantias anteriormente expressas pelo Presidente da República. Parece dispensável recordar o que veio a passar-se, poucos meses depois, com radical mudança de atitudes.

O ministro alargou-se, depois, em críticas à centralização exercida pelo Ministério do Ultramar, sublinhando como pelo telefone se davam ordens a territórios distantes. Parecia entender que isso era sinónimo do mais despótico colonialismo.

Referindo-se à escolha feita do governador-geral de Moçambique, afirmou exactamente:

“Moçambique, com confortante convergência, quis para seu governador o Dr. Henrique Soares de Melo. É natural de Moçambique, advogado brilhante e prestigiado, democrata de todas as horas, da alma, de longa data defensor do princípio da autodeterminação com todas as consequências, pessoa dotada de proverbiais dotes de inteligência, equilíbrio e ponderação. Eu próprio – aliás seu amigo – teria votado nele”.

A verdade é que, com tão tremendas qualidades (que pareciam ofuscar os méritos de Ayres de Ornelas e António Enes), o Dr. Soares de Melo viria a exercer um governo desastrado nos escassos 45 dias que se manteve no poder e nem sequer abandonou o condenado hábito de obedecer às ordens telegráficas do ministro. O colonialismo só tomava novas roupagens, tanto quanto possível “democráticas”, porque regressava às suas piores formas.

A linha dinástica estava definida: Costa Gomes escolhera Almeida Santos e este votara no seu amigo Soares de Melo, afastando o incómodo Gen. Silvino Silvério Marques que não lhes teria feito o jogo.

Nada podia ser mais claro.

Aliás, a inovação que o Dr. Almeida Santos com tanto ênfase destacara “de ter sido a primeira vez que a nomeação dos Governadores de Angola e Moçambique foi precedida de uma directa auscultação da vontade das populações” não voltou mais a repetir-se. Ainda que com o mesmo ministro a desempenhar as mesmas funções em sucessivos governos, cada vez mais “democráticos”.

Recearam, sem dúvida, repetir a experiência.

Mandato de captura, contas congeladas e inquéritos

Depois de regularizar a minha situação junto das autoridades espanholas, que foram impecáveis mas rigorosas no cumprimento das formalidades, comecei a ser assaltado por jornalistas que depressa descobriram onde me encontrava.

Aliás, não me escondi e nem tinha motivo para isso, confiado no respeito espanhol pela legalidade em que imediatamente me integrara.

Afastei-me de quaisquer comentários sobre a situação portuguesa e concentrei-me nos problemas de Moçambique. Afirmei o propósito de ali regressar quanto antes com a força dos direitos que ninguém me poderia retirar. Disse do meu convencimento de que o governo não se atreveria a impedir-me de o fazer e não ousaria deter-me. Defendi a autodeterminação a caminho da independência multi-racial, com aberta participação dos movimentos nacionalistas e integração numa “Comunidade Lusíada”.

Critiquei o governo que o Dr. Soares de Melo acabava de constituir, afirmando que não tinha qualquer representatividade: nem racial, nem política e nem regional.

Creio que nisso só tive o mérito da primazia porque, depois, todos vieram a dizer o mesmo.

O próprio Samora Machel havia de declarar:

“É erro grave o que o governo português está a cometer. Esse governo não é popular, não é governo de Moçambique. É governo provisório colonial. Representa os interesses dos colonialistas. São representantes de Lisboa. Tenhamos essa noção bem fixa”.

Há que reconhecer que tinha razão e que tinha sido, na verdade, muito grave o erro cometido pelo Dr. Almeida Santos complicando, em obediência a plano de que quero crer que foi joguete, o xadrez descolonizador.

Alguns amigos meus criticaram-me pela clareza com que eu disse a verdade.

Continuo a não estar arrependido apesar das consequências que sofri. Pelo menos, houve o mérito de logo se definirem posições.

Em 18 de Junho todos os jornais, moçambicanos e portugueses, publicavam a seguinte nota oficiosa do governo geral de Moçambique:

Na imagem: Jorge Jardim

“Foi divulgada pela agência “Reuter” uma notícia que refere ter o Sr. Eng.º Jorge Pereira Jardim abandonado a embaixada do Malawi em Lisboa, contrariando uma determinação das autoridades portuguesas.

A sua presença foi, posteriormente, assinalada em Madrid donde partiu para destino desconhecido e onde deu uma conferência de imprensa na qual afirmou que regressaria brevemente a Moçambique e em que desafiava as autoridades deste Estado a prendê-lo.


Porque tais afirmações constituem um desprestigiante e aberto desafio às autoridades deste Estado legalmente constituídas e porque a sua presença em Moçambique poderá, eventualmente, tornar-se nociva, dá-se a público conhecimento, de que foram tomadas as seguintes medidas:


- Emissão, pelas autoridades competentes, dum mandato de captura contra o referenciado;

- Congelamento de todas as suas contas bancárias existentes neste Estado;

- Averiguação da sua responsabilidade criminal, por actos praticados durante a vigência do anterior regime”.


Trata-se de um documento notável que pareceria impróprio de “advogado brilhante e prestigioso”, “democrata de todas as horas, da alma” e “pessoa dotada de proverbiais dotes de inteligência, equilíbrio e ponderação" para me ater aos qualificativos que lhe atribuíra o ministro Almeida Santos”.

Quando os jornalistas voltaram a procurar-me em Madrid, onde permanecia e sem sequer mudar de hotel, fiz-lhes notar que a nota oficiosa era um modelo de prepotência. Passava-se mandato de captura e determinava-se o congelamento de bens com base em recortes de jornais, sem se conceder ao acusado a mais ligeira possibilidade de defesa. Acrescentava-se, depois, que se iria averiguar da responsabilidade criminal por actos eventualmente cometidos sem ao menos se mencionar a suspeita de quais eles fossem.

Fazia-se tudo ao contrário das mais elementares normas jurídicas.

Comentei: “Pelo que me informam, parece que o Dr. Soares de Melo evidencia preocupantes tendências fascistas”. Isto enfureceu os provisórios governantes de Moçambique que voltaram a sentir-se desprestigiados.

Cumpriam-se ordens de Lisboa

A verdade da história veio a ser averiguada depois.

Por telegrama de 15 de Junho dirigido ao governador-geral de Moçambique pelo secretário-geral do Ministério da Coordenação Interterritorial, determinava-se aquela ordem de captura, o congelamento das contas bancárias e a publicidade das medidas adoptadas “justificando-as na medida do possível”!

Cópia deste telegrama veio a tombar em mãos amigas e do seu conhecimento fiz uso em sucessivas exposições ao governo de Moçambique e ao Presidente da República Portuguesa. Fiz quatro exposições, intervaladas, desde Outubro de 1974 a Outubro de 1975 e nelas sempre insisti para que me fosse dado conhecimento do resultado das “averiguações” que naquela nota oficiosa (de Junho de 1974) se ameaçava irem ser realizadas. Até hoje não obtive outra resposta que não fosse o burocrático ofício acusando a recepção. Ao menos está provado que as receberam.

Ninguém desmentiu as minhas denúncias e ninguém foi capaz de me acusar de qualquer acto criminoso, apesar de haverem sido interrogadas, detidas e pressionadas as pessoas que mais de perto comigo conviviam ou colaboraram.

Neste método de intimidação até o meu corajoso advogado acabou por ser preso, em Dezembro de 1974, pelas autoridades portuguesas na Beira. Pedi-lhe que deixasse de intervir no processo, para não ser vítima de novos abusos.

Falta, ainda, acrescentar que o director da polícia judiciária, em Lourenço Marques, entendeu não haver fundamento legal para a passagem do mandato de captura que lhe havia sido determinada pelo procurador da República em obediência a despacho do Dr. Soares de Melo. Isso de nada valeu e a determinação foi mantida, com o protesto daquele funcionário.

A polícia judiciária moçambicana remeteu, depois, carta precatória ao Ministro da Coordenação Interterritorial pedindo o fundamento daquela ordem. Também nunca foi recebida resposta.

Um telegrama do ministério, em Lisboa, tinha mais força do que a lei. Assombra recordar as diatribes do Dr. Almeida Santos contra a prepotência do regime derrubado que “teve o telefone por principal instrumento” dos seus métodos coloniais. Até parece que o telégrafo estava fora do âmbito das suas intenções reprovadoras, já que o usou com tanta desenvoltura.

Seja como for, o certo é que me vi privado de todos os direitos e roubado dos meus bens, só por ter tido a coragem de dizer aos jornais (em Junho de 1974) o que toda a gente pensava e com razão comprovada, do governo provisório de Moçambique. Também é certo que a minha numerosa família, com as contas bancárias congeladas, teve de viver do apoio financeiro de amigos e, até, da comovedora subscrição de trabalhadores africanos da Beira que a fora, entregar, abnegadamente, a minha mulher.

Também tive a compensação moral de nada se ter provado no duro inquérito que me quis atingir.

Se tal rigor fosse sempre aplicado, tenho dúvidas se a mesma inocência poderia ser demonstrada por quem se apropriou de serviço da China existente na residência oficial de alto comando, em Angola, ou tentou comprar clandestina e ilegalmente, pedras preciosas no decurso de uma visita de trabalho ao interior do território.

Esses actos foram praticados pelo Gen. Costa Gomes ou sua mulher, conforme me declarou pessoa identificada e de idoneidade indesmentível.

Denuncio factos concretos. Coisa que contra mim nunca aconteceu.

Aliás, o mesmo Gen. Costa Gomes fez enviar telegraficamente, para Moçambique, instruções para que as Forças Armadas interviessem no caso de eu pôr pé em Moçambique, apresando o meu avião. Acrescentava-se que me deviam abater, se necessário.

A tranquilidade do senhor ministro

Li, ultimamente, que o Dr. António de Almeida Santos (agora transplantado para o Ministério da Comunicação Social) revelara compreensível tranquilidade quanto às acusações que circulam, em todas as bocas, sobre a existência das suas contas na Suíça.

Em argumento de advogado sustentava e com razão, que é quem acusa que compete provar. Até estou de acordo. Mesmo quando se saiba como há coisas difíceis de provar.

Só aconteceu que no meu caso a mesma norma jurídica não funcionou. Fui acusado, fui vítima de atropelos e prepotências, tive a vida profissional destruída e congelaram-me as contas. E sem nada se darem ao trabalho de provar.

Tudo por ordem do Dr. Almeida Santos.

Parece que as regras do jogo não são sempre as mesmas e que só funcionam quando esteja em causa “um ministro revolucionário” que logo acontece ser um dos responsáveis oficiais pela descolonização que lançou para a miséria e para o desespero, centenas de milhar de pessoas. E a essas, nem se lhes trocava o dinheiro ultramarino que traziam para sobreviver uns dias. Para essas, não houve transferências. Nem para Portugal.

A tranquilidade do senhor ministro não seria a mesma se fosse consentida a minha entrada, legal, no país de que é governante e se as testemunhas pudessem depor livremente num tribunal independente.

Se quem acusa tem de provar, não é menos verdade que para o fazer tem de dispor de garantias. Tem de ter garantia de que não se lhe arma uma cilada depois de se declarar nada haver “política, pessoal ou criminalmente” em seu desabono. Tem de ter a garantia de não lhe confiscarem os bens e se justificar esse abuso “na medida do possível”. Tem de ter a garantia de não ser dada ordem para o abaterem como animal selvagem.

Essas garantias, sabe o Dr. Almeida Santos que me foram negadas. Até me foi negado conhecimento das condições do inquérito que, por sua ordem, me foi mandado instaurar há quase dois anos.

Se quem acusa tem de provar, onde estão as provas daquilo que o levou a condenar-me sem julgamento?

Mas sei o que isso me tem custado e, mais ainda, o que tem custado a tantos outros sem ninguém se dar ao trabalho de produzir provas, perante a indiferença do mesmo senhor ministro que, na impunidade da sua força, exige provas para aquilo que toda a gente sabe a seu respeito.

Cuidado porém. As contas da Suíça ou os prédios em Portugal podem não passar de pretexto para desviar as atenções dos actos mais graves que, como ministro, o Dr. Almeida Santos cometeu ou daqueles de que foi cúmplice.

As vítimas de Moçambique, os milhares de mortos ou desterrados de Angola, a guerra civil de Timor são coisas de que não se pode desviar a atenção. E nesses casos há provas.

Parece que só se salvou Macau porque a China não consentiu, ali, a “descolonização original”.

Se o repto que o Dr. Almeida Santos lançou não é uma farsa e se quer, mesmo, ser julgado com provas, lanço-lhe o desafio para nos encontrarmos, perante tribunal, desde que me ofereça (e às demais testemunhas) o mínimo de garantias que são exigíveis.

Se não o fizer, também não perde pela demora.

Quem já esperou dois anos…

Um livro não é uma carta. Por isso não espero resposta.

Regresso a África

Permaneci alguns dias em Espanha, reencontrando-me com amizades que em Madrid consolidara nos meus distantes tempos de estudante ou quando ali desempenhei missões oficiais de colaboração entre os dois países peninsulares. Não era, aliás, segredo para ninguém a formação hispânica que recebera e que levara, mesmo, a ser considerado como excessivamente “iberista”.

Na imagem: Cape Town

Tomei a precaução de limitar os meus contactos com jornalistas e pedi a amigos, na África do Sul, para fazerem em meu nome reservas de hotel em Johannesburg, Cape Town, Durban e Salisbúria. Esta medida deu o efeito desejado, pois os jornalistas portugueses e moçambicanos referenciaram, com copiosos detalhes, a minha suposta presença nessas paragens. Até se chegou a noticiar que eu teria estado em Moçambique e houve quem assegurasse ter-me visto na Beira, movimentando todo um aparato policial.

Com isso deixavam-me tranquilo na Europa, como mais me interessava.

Em Londres encontrei-me com Pombeiro de Sousa que me informou sobre o que se passara em África durante a minha forçada imobilização.

Encontro oficial em Lusaka

Depois da visita a Blantyre e encontro com o Presidente Banda, o Dr. Kaunda tinha feito informar Pombeiro de Sousa de que a “Frelimo” estaria disposta a realizar um primeiro contacto informal com representantes do novo regime português. Sugeria-se que tivesse lugar em Lusaka nos últimos dias de Maio ou começos de Junho. Samora Machel encabeçaria a delegação da “Frelimo” e tudo se passaria sob os auspícios da Zâmbia.

Entretanto, era recebida a informação de que Lisboa não considerava desejável a nossa intervenção nesses contactos, nem como elementos de ligação, e Pombeiro de Sousa encaminhou o convite do Dr. Kaunda para as vias oficiais portuguesas, dando dele conhecimento ao encarregado de negócios de Portugal no Malawi, Dr. Matos Proença. Este logo enviou mensagem para o seu ministério.

A resposta tardava em chegar, porque Costa Gomes confiava mais no resultado das diligências que pessoalmente movimentara em Moçambique, causando enervamento em Lusaka. O Dr. Kaunda recorreu, então, aos bons ofícios do governo britânico.

O único telex que a embaixada portuguesa em Blantyre recebeu do seu ministério limitava-se a determinar que cessassem as funções de Pombeiro de Sousa como cônsul honorário de Portugal. Nisso transparecia a influência vingativa de Futcher Pereira, antigo embaixador do Malawi, que fora dos raros diplomatas a precipitar-se na adesão ao novo regime em evidente manobra de apagar a lembrança do servilismo com que actuara na situação política anterior. Um dos casos mais graves tinha surgido em consequência da activa colaboração entre Futcher Pereira e o sub-director Vinhas, da “PIDE”, na condução de acções clandestinas contra elementos da “Frelimo” em território do Malawi. A isso, sempre se opusera firmemente Pombeiro de Sousa, com o meu inteiro apoio e concordância.

A demissão de cônsul honorário de Portugal, ao cabo de uns quinze anos de trabalho dedicado, era a consequência daquela atitude que assumira contra as pretensões policiais de Futcher Pereira.

O encontro de Lusaka que o Dr. Kaunda propusera por nosso intermédio, veio a concretizar-se nos primeiros dias de Junho com a presença do Dr. Mário Soares (então Ministro dos Negócios Estrangeiros) e do Maj. Otelo Saraiva de Carvalho (representando o “MFA”).

Não foram felizes as exteriorizações de camaradagem em que Mário Soares foi pródigo, no ostensivo abraço a Samora Machel e não correram paralelas com a eficiência negociadora.

Os dirigentes da Zâmbia e da “Frelimo” desconfiaram daquela exuberância e não entendiam a despreocupação de um ministro português (fosse qual fosse a sua ideologia política) pelo acautelamento de aspectos fundamentais. Perante a total impreparação para tratar os problemas, as coisas chegaram ao ponto de ser a “Frelimo” a sugerir uma agenda de trabalhos em que se mencionavam os assuntos que, presumivelmente, os delegados portugueses desejariam abordar e esclarecer.

Pelos dados concretos que tive a oportunidade de conhecer creio, ainda, que o Dr. Mário Soares foi, sobretudo, vítima da preocupação de se valorizar, interna e externamente, como obreiro da descolonização. Com isso conquistaria prestígio pessoal e para o seu partido, apresentando-se como o mais dotado para o diálogo e mais capaz de encontrar as soluções que se impunham.

Cometeu um erro táctico muito grave porque veio a recair sobre ele a responsabilidade, enquanto outros manobravam por canais diferentes, em premeditado plano que o utilizava como figura de fachada.

Há que reconhecer, objectivamente, que não lhe cabem as maiores culpas em tudo o que veio a acontecer. O Dr. Mário Soares, foi marioneta habilmente explorada. Todavia, se não lhe pertenceu a iniciativa da manobra, já não se pode libertar de nela ter participado com os resultados conhecidos.

Por outro lado, carecia de apoio profissional válido por parte dos conselheiros diplomáticos que o rodeavam e que da África sabiam muito pouco. Entre os maus elementos que abundavam no Ministério dos Negócios Estrangeiros teve a pouca sorte de escolher os piores.

De qualquer modo este primeiro encontro de Lusaka redundou num fracasso, perdendo-se semanas preciosas e afastando-se, cada vez mais, a possibilidade de uma negociação digna.

Otelo não pôde encontrar-se comigo

Na imagem: Carmo Jardim, instrutora dos Grupos Especiais Páraquedistas (clique para ampliar)


Entretanto, Otelo Saraiva de Carvalho estabelecera contacto comigo, através de amigos comuns.

Nunca nos tínhamos visto mas parecia haver certa comunicabilidade entre nós. Sem sabermos bem porquê, criou-se um vínculo de simpatia mútua e vim a ter razões de agradecimento pela protecção dada, em Portugal, à minha família e extrema correcção com que se ocupou da sua segurança.

O Maj. Saraiva de Carvalho queria encontrar-se comigo e, depois de arredadas hipóteses que sugeriu, tudo se combinou para podermos conversar em Madrid, num hotel da zona do aeroporto, em 27 de Junho. Pombeiro de Sousa deslocar-se-ia comigo, de Londres, onde logo regressaríamos.

Na aparência, Otelo havia regressado de Lusaka no convencimento de que a minha intervenção poderia ser útil. Tivera instintivamente a percepção do falhanço que fora aquele encontro com a “Frelimo” e os oficiais do “MFA”, em Moçambique, insistiam junto dele por uma solução urgente que eu poderia estar em condições de obter.

Mandou-me perguntar, pelo nosso canal de contacto, se eu aceitaria que Mário Soares estivesse também presente no nosso encontro.

Eu também nunca vira Mário Soares e não conhecia dele mais do que se ia lendo nos jornais ou ia ouvindo nos comentários, políticos e pessoais, que a seu respeito circulavam. Não tinha qualquer interesse em conhecê-lo, mas não recusei a sugestão por admitir que, do diálogo, pudesse resultar alguma coisa de útil para Moçambique.

Havia até acontecido que quando escapei de Portugal, Mário Soares respondera a perguntas de jornalistas, ao embarcar para Otawa, no aeroporto de Lisboa, dizendo que eu me ausentara “de forma mais ou menos clandestina” e por motivos que só eu poderia conhecer, dado que contra mim nada existia pessoal, política ou criminalmente. Quando os homens da informação me mostraram esses comentários do ministro, é evidente que não fui amável. Respondi: “Ou se trata de um mentiroso ou de um ignorante; em qualquer das hipóteses não me parece que seja posição recomendável para um ministro com tão especiais responsabilidades no governo português.

Julgo que o Dr. Mário Soares não gostou do que eu disse (e que os jornais reproduziram como o haviam feito com as suas declarações) mas a verdade é que eu não podia dizer outra coisa. Estava certo da existência do mandato de captura, que até fora mostrado a correspondentes estrangeiros e não podia esquecer o aparatoso cerco à embaixada em Lisboa.

Se o ministro sabia disso e afirmava o que afirmou, não tinha outro qualificativo que não fosse o de mentiroso (mesmo que mentindo diplomaticamente), mas se o não conhecia, tratava-se de ignorância e altamente preocupante.

Efectivamente, o chefe do Estado Maior General, Francisco da Costa Gomes, emitiu despacho determinando a minha imediata captura no dia 1 de Junho e essa decisão foi circulada no dia 4, a todas as entidades policiais e equivalentes. Não era crível que dela não tivesse conhecimento o Ministro dos Negócios Estrangeiros, no dia 18 de Junho.

Admito, hoje, que de facto a desconhecesse, o que retira a suspeita de haver mentido, neste caso. Mas isso confirma a hipótese da ignorância, evidenciando os métodos usados para converter os mais destacados governantes em joguetes de um planeamento premeditado.

Aceitar conduzir o grave problema da descolonização na ignorância, não recomenda ninguém para chefe de partido político, com certa representatividade, e muito menos para as sérias responsabilidades do governo.

Tudo quanto tenho deixado referido veio a ter plena confirmação com o cancelamento do encontro com Otelo de Saraiva de Carvalho. À última hora e invocando afazeres militares inadiáveis, foi anulado aquele encontro.

Mais tarde, um oficial da sua confiança haveria de revelar-me, em Cáceres, que a alteração do planeado resultara de terminante proibição por parte do Gen. Costa Gomes a quem Otelo referira o projecto.

Costa Gomes persistia, assim, em conduzir pelas suas vias a descolonização, temendo, mesmo, que um revolucionário insuspeito como Otelo de Saraiva de Carvalho (e eventualmente Mário Soares) pudesse ser influenciado pelo conhecimento de existirem possibilidades de negociação que não se enquadravam nos seus desígnios.

O posterior envio de Otelo Saraiva de Carvalho a Cuba integra-se no mesmo planeamento. Era evidente que um jovem oficial impetuoso e com deficiente cultura política, seria presa fácil da atractiva personalidade de Fidel de Castro. Isso atirá-lo-ia para a extrema-esquerda onde poderia ser útil a certos intuitos políticos ou onde poderia ser inutilizado se mostrasse demasiada capacidade de competição.

Ambas as coisas vieram a acontecer (ob. cit., pp. 259-271; 273-275).

Continua

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (viii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim

Na imagem: Palácio de Belém

Mentira, cerco e fuga
No dia 15 de Maio, o Gen. António de Spínola tomava posse como Presidente da República por designação da Junta de Salvação Nacional, nos termos do "Programa do Movimento das Forças Armadas".

Quando me ocupava da arrumação de alguns papéis, trabalhando na embaixada do Malawi, recebi um telefonema do Palácio de Belém (eram 20.15). Era o próprio Gen. Spínola que me queria falar.

Na curta conversa telefónica que tivemos, pediu-me, atenciosamente, para me deslocar ao seu gabinete. Prontifiquei-me a fazê-lo, mas solicitei que me recebesse prontamente porque nessa noite embarcaria para África. Respondeu-me que era exactamente por isso que me queria falar, acrescentando "queríamos pedir-lhe que não seguisse".

Poucas dúvidas tive sobre o significado destas palavras e fui imediatamente para Belém, onde cheguei em menos de meia hora. (...)

Com Spínola e Costa Gomes
O Presidente da República, com um nervosismo embaraçado que contrastava com a naturalidade em que decorrera a anterior entrevista, disse haverem-me chamado para pedirem que cancelasse a minha viagem por considerarem que, naquela altura, a minha presença em Moçambique poderia ser perturbadora.

Perguntei se também isso se entendia quanto à minha deslocação ao Malawi e à Zâmbia, mesmo sem entrar em Moçambique. O Gen. Spínola respondeu-me que também isso seria inconveniente, acrescentando que o Gen. Costa Gomes melhor esclareceria das razões.

Este, protegido pelos inseparáveis óculos fumados e muito interessado em observar os desenhos do tapete que cobria o chão, disse que, durante a sua recente permanência em Moçambique, havia contactado com muita gente que o tinha querido procurar. Em todos encontrara uma animosidade contra mim que tornava desaconselhável a minha ida, para se evitarem novas e inconvenientes agitações.

Observei que, não sabendo com quem havia conversado, me era impossível formar juízo sobre o significado do que afirmara. Não conseguia, no entanto, encontrar lógica no argumento porque, se todos estavam contra mim, não seria provável que eu motivasse qualquer agitação; quanto muito poderia acontecer que essa animosidade geral conduzisse a tornar-me a estadia desagradável ao ponto de me forçar a deixar o território. Insisti em não entender como uma pessoa, votada a tal isolamento, poderia exercer acção perturbadora. Por outro lado, certamente que isso se não aplicava ao Malawi e à Zâmbia onde me aguardavam os chefes de estado, com a certeza de ser bem acolhido como sempre.

O Gen. Costa Gomes retorquiu-me, "falando francamente", que toda a gente sabia que eu dispunha de um verdadeiro exército privado, que possuía armamento oculto e meios de comunicação rádio, além de contar com uma rede de informação que poderia mesmo classificar-se "como uma segunda DGS". Tudo isto poderia ser usado para pertrubar o processo descolonizador.

As cartas tinham sido jogadas e, por isso, ironizei afirmando que, a ser assim, não estava afinal tão isolado como se começara por dizer. O que parecia era existir o propósito de, sob qualquer pretexto, me afastarem de Moçambique por a minha presença ser obstáculo para os desígnios da minoria extremista de cuja honestidade descolonizadora havia boas razões para desconfiar. Acentuei ser certo dispor de simpatias em muitos sectores incluindo unidades militares ou militarizadas e que contava com a estima da maioria da população branca ao mesmo tempo que merecia a confiança de boa parte das massas africanas.

Na imagem: António de Spínola (centro)

Era essa posição que preocupava a minoria activista que pretendia impedir o meu regresso. Por isso deveria eu regressar para evitar que os meus amigos ou simpatizantes fossem manipulados inconvenientemente, tanto mais que eu garantira ao Gen. Spínola o propósito de colaborar nos propósitos descolonizadores da JSN, que coincidiam com os meus, executando o "Programa do MFA" ao qual dera, publicamente a minha adesão.

Ao mesmo tempo receava que a brusca suspensão da viagem causasse reacções de dúvida nos chefes de estado da Zâmbia e do Malawi que em mim confiavam e que poderiam oferecer muito positiva contribuição para as negociações relativas à autodeterminação de Moçambique.

Como serviços próprios só dispunha dos "SEI", que em nada se assemelhavam à "DGS" e que sempre haviam estado sob o comando de oficiais do Exército. Parecia-me de toda a conveniência que se fizesse regressar aos "SEI" o Major Varela (destacado e activo militante do "MFA" em Moçambique) que havia sido afastado nas condições que recordei.

O Gen. Costa Gomes, que tomara algumas notas, manteve a sua opinião sobre a inconveniência do meu regresso a África e sem já se dar ao trabalho de buscar argumentos para isso. Quanto aos presidentes do Malawi e da Zâmbia, entendia ser bastante eu dizer-lhes que havia adoecido.

Retorqui que essa solução simplista não pegava porque ambos me conheciam bem e sabiam que tinha de estar moribundo para faltar a um encontro desta importância, na hora histórica que Moçambique atravessava. Compreendia que as autoridades revolucionárias me quisessem afastar das negociações descolonizadoras. Recomendava, porém, que se mantivessem ligações com a Zâmbia e o Malawi por serem os países que, conjuntamente com a Tanzânia, melhor podiam auxiliar as vias de descolonização que acautelassem os interesses essenciais. Para não criar dificuldades eu estaria disposto a enviar imediato telex e a escrever cartas que faria chegar sem demora ao Dr. Banda e ao Dr. Kaunda, em termos de se preservar aquela colaboração.

O Gen. Costa Gomes assegurou que já dispunha de melhores canais, mas o Gen. Spínola aceitou, imediatamente, a minha oferta, mostrando-se agradecido pela compreensão que evidenciava.

Para sondar o terreno acrescentei que enviando as cartas de Lisboa poderiam os destinatários duvidar da espontaneidade do que nelas escrevesse. Sugeri, assim, que concordassem com a minha deslocação a Londres onde as entregaria aos embaixadores daqueles países para seguirem por mala diplomática. Garantia, sob palavra de honra, que regressaria a Lisboa no avião imediato.

Foi-me logo dito que essa hipótese não era aconselhável. Interroguei se isso significava qualquer dúvida sobre o meu cumprimento da palavra dada e o Gen. Spínola apressou-se a esclarecer que de modo algum se tratava disso. Cuidavam, unicamente, de evitar especulações dada a curiosidade com que a imprensa internacional seguia todos os meus passos.

Fiquei, assim, a saber que não só me impediam de voltar a África como pretendiam manter-me em Lisboa. Era evidente, para mim, que o próximo passo seria o da prisão. Creio que devo ao cavalheirismo do Gen. Spínola que tal medida não fosse imediatamente tomada; sei, por testemunho qualificado, que Costa Gomes pretendia que isso fosse logo feito.

Ficou combinado que eu enviaria ao Gen. Costa Gomes as minutas das cartas a remeter a Banda e a Kaunda, para verificarem se elas correspondiam ao que eu me tinha proposto fazer ou para, eventualmente, introduzirem as alterações julgadas convenientes.

No decurso da conversa, o Gen. Costa Gomes, triunfal e tranquilizado com o caminho fácil que as coisas levavam, criticou asperamente o "Notícias da Beira" pelas informações alarmistas que difundira sobre os acontecimentos que haviam coincidido com a sua estadia em Moçambique. Mentindo, com incrível desembaraço, fez relato dos factos que nem sequer se aproximavam da realidade. Limitei-me a comentar, com frieza, que essa versão não correspondia às notícias detalhadas que recebera e que estava certo de serem exactas.

Com este desmentido rotundo, o Gen. Costa Gomes tornou-se agressivo e retorquiu que todos conheciam a "forma despótica" como eu conduzi os jornais. A isso respondi que sempre dera uma ampla liberdade aos meus colaboradores, mas compreendia que a disciplina voluntária existente fosse incómoda para os que queriam assaltar esses meios de informação e não tinham conseguido mais do que infiltrar alguns elementos do corpo redactorial.

Acrescentei que, à frente dessa campanha, estava o Dr. Afonso dos Santos, destacado marxista, ao qual não teria dúvidas em entregar a direcção do jornal se isso servisse aos propósitos da Junta, no interesse de Moçambique. Estava disposto a facilitar essa solução, apesar de aquele advogado haver sido o mais violento inimigo no caso dos padres do Macuti, chegando ao ponto de mentir, descaradamente, em pleno tribunal, deturpando a leitura do depoimento de uma testemunha. Isso valera-lhe ter sido advertido, com dureza, pelo magistrado que ocupava o lugar de juiz-auditor.

Na imagem: Costa Gomes (2.º à esq) e o General Spínola ao centro (Guiné)

O Gen. Costa Gomes acusou o toque e respondeu que não estava em causa a conveniência de tal nomeação do Dr. Afonso Santos (que mais tarde e sob o seu consulado na presidência da República, viria a ser designado para tais funções), mas que aproveitava o ensejo para me informar que já tinha mandado vir o processo dos padres do Macuti para "se ver bem como aquilo tinha sido". Observei que a sentença já tinha sido confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça Militar, mas que só via vantagem na revisão do julgamento (caso possível) por se me afigurar que tinha havido brandura excessiva, consentindo-se incríveis manobras à defesa. Claro que nunca mais voltei a ouvir falar em tal revisão, tão ameaçadoramente anunciada.

Chegados ao termo da audiência, o Gen. Spínola acompanhou-me à porta do gabinete e ao despedirmo-nos, afirmei:

"Antes de sair, Senhor Presidente, tenho o dever de lhe declarar que nada me preocupa a minha segurança, mas que muito me preocupa a sorte deste pobre país".

O Gen. Spínola foi quase afectuoso na forma como me apertou a mão.

A minha despedida com o Gen. Costa Gomes foi gélida e quase que agressiva.

Entre nós era impossível qualquer entendimento porque estava em causa Moçambique e o futuro da Nação Portuguesa.

Tinha-me demorado em Belém cerca de uma hora.

Muita importância me davam os mais altos dirigentes da Junta para me dedicarem tanto tempo, com tantos problemas a solicitá-los, no dia da investidura do Presidente da República.

Retirei-me sem dúvidas quanto ao enfeudamento de Costa Gomes aos propósitos marxistas dos "democratas" e intenção de conduzir o processo descolonizador nesse rumo, afastando todas as interferências perturbadoras que, como a minha, a isso tentassem opor-se.

Ficava-me já pouco campo de manobra e enfrentava obstáculos que sabia serem dos mais sérios. Continuei disposto a lutar.

Sobretudo preocupava-me a confiança que nele depositava o Gen. Spínola.

Deixava-se influenciar por Costa Gomes, por forma alarmante, agravando-se isso com a capacidade de mentira que acabava de testemunhar.

As minhas piores previsões viriam a ser superadas, todavia, pelos factos que a seguir descrevo e documento.

Cartas censuradas
No dia 17 (uma sexta-feira) fiz entregar, em casa de Costa Gomes, as minutas das cartas que me propunha dirigir ao Presidente Banda e ao Presidente Kaunda. Fi-las acompanhar por cerimoniosas linhas e por cópia do telex que transmitira a Blantyre. Juntava, ainda, o projecto da carta que remeteria a Pombeiro de Sousa pedindo-lhe que fizesse chegar as minhas mensagens aos destinatários e a quem explicava que a nossa actuação de tantos anos (e, sobretudo, nos últimos meses) deveria cessar,dadas as vias de contacto de que o novo regime dizia dispor.

Na imagem: Carmo Jardim

(...) No dia seguinte (18) almoçava com minha filha e com meu genro num restaurante da Baixa, já tarde, quando ali nos procurou um oficial do gabinete do Gen. Costa Gomes que era portador de uma carta para mim. Tratava-se do Maj. Ravara. Identificámo-nos e passei-lhe recibo.

Quando li a carta assinada por Costa Gomes e os cortes introduzidos nas minutas que lhe havia enviado, nem queria acreditar na enormidade que esses documentos testemunhavam.

(...) Não posso, porém, deixar de referir desde já, os aspectos principais e de tirar as conclusões que são transparentes.

Na carta que o Gen. Costa Gomes assinou, afirmava-se:

"Junto envio a minuta das cartas que V. Ex.ª tencionava enviar aos Presidentes Banda e Kaunda.

De acordo com a sua sugestão, S. Ex.ª o Presidente e eu achámos por bem introduzir os cortes que constam das fotocópias".


Por muito que se pondere a deferente sugestão por mim formulada, suponho que deve ser coisa única isto de se admitir, em carta responsabilizante, a imposição de "cortes" em correspondência de tal nível.

Poderia, ao menos, haver adoptado a forma delicada de formular recomendações.

Para não deixar dúvidas acrescentava, expressamente, que tais "cortes" eram da responsabilidade do Presidente da República que necessitava da concordância (por isso mencionada) do chefe do Estado Maior General das Forças Armadas.

Vejamos, porém, o que foi cortado.

Na carta ao Presidente Banda, para além de serem eliminadas as delicadas justificações que eu invocava para manter a permanência em Lisboa, suprimiram-se os adjectivos com que qualificava as minhas entrevistas com o Gen. António de Spínola ("amigáveis e muito úteis") bem como se arredava tudo quanto permitisse admitir, ainda, eventual interferência no futuro. Não se queriam considerar, sequer, quaisquer hipóteses de colaboração ainda que remotas e mesmo que úteis.

Conhecendo-se os termos em que havia decorrido o meu encontro a 4 de Maio, com a presença do Gen. Silvino Silvério Marques, não é possível atribuir esses cortes ao Gen. Spínola.

Mais aberrante, todavia, foi suprimir-se cerce, a referência aos bons ofícios do Presidente do Malawi que se continham na seguinte frase, integralmente "cortada" do texto: "o novo Regime Português muito apreciou a Vossa declaração acerca da evolução dos territórios ultramarinos portugueses, bem como a Vossa oferta para auxiliar neste campo com o Vosso conselho muito respeitado, esclarecido e experimentado".

Com uma penada de tinta negra arredava-se a oferecida mediação de um Estado africano, numa altura em que nenhuma ajuda seria de menosprezar.

O mesmo tratamento se aplicava à Zâmbia nos "cortes" introduzidos na carta para o Presidente Kaunda.

Para além dos aspectos pessoais, já mencionados, eliminava-se a seguinte passagem: "o novo Regime Português muito aprecia a Vossa oferta para auxiliar acerca da evolução dos territórios ultramarinos portugueses com os Vossos contactos e o Vosso experimentado conselho".

Não se tratava, pois, de uma posição de dúvida quanto à capacidade de intervenção do Malawi (que, no passado, o Gen. Costa Gomes tanto insistira em acusar de colaboração activa com a "Frelimo"), mas também da exclusão da Zâmbia cuja autoridade dialogante estava fora de questão.

Existia, já nessa altura, uma deliberada posição quanto às fórmulas descolonizadoras a seguir para a entrega do Ultramar à influência marxista-soviética.

Os factos e documentos que cito (...) não consentem qualquer dúvida a tal respeito. No centro do processo encontrava-se a figura do Gen. Costa Gomes. O que veio a passar-se depois, apenas o confirmou.

Confesso, no entanto, que nos primeiros tempos cheguei a reagir contra o Gen. Spínola, responsabilizando-o por uma atitude incompreensível e incoerente com o que me havia afirmado. Os acontecimentos que se seguiram, vieram, porém, identificar a influência dominadora a que estava submetido e que atingiu as raias da deslealdade que visava comprometê-lo.

O Gen. Spínola foi usado, hábil e premeditamente, como a figura de fachada atrás da qual se abrigavam os coveiros do Ultramar.

Na altura não me restavam muitas hipótese de jogo para fazer e, por isso, apressei-me a expedir as cartas, com os "cortes introduzidos" enviando delas cópias ao Gen. Costa Gomes. Fiz isso logo no dia 19.

Cumprindo o que havia sido combinado eu descuidava, porém, a minha segurança e facilitava o desencadeamento da acção que visava eliminar-me da luta, em que persistia para obter uma solução equilibrada em Moçambique.

Intransigência, serenidade e decisão

Efectivamente, apenas dois dias volvidos, fui informado com toda a certeza de que estava a ser passado mandato de captura contra mim, acompanhado de uma guia de marcha para a Ilha do Sal. As ordens provinham do Gen. Costa Gomes.

Aceitei com serenidade a situação que não era totalmente inesperada e transladei para a embaixada do Malawi os meus pertences indispensáveis, assim como alguma documentação e armamento de defesa de que felizmente dispunha. Já anteriormente tinha providenciado para ali dispor de géneros que me consentisse, enfrentar um cerco.

Não me apanhavam desprevenido.

Só não posso, por enquanto, mencionar a pessoa identificada que me alertou e a cuja camaradagem fiquei a dever a minha sobrevivência para luta.

Icei a bandeira do Malawi e tomei as disposições de segurança.

Alertei alguns amigos do corpo diplomático.

Não estava disposto a entregar-me e nem a deixar que me prendessem Se o tentassem teria de provocar um escândalo. Joguei tudo na intransigência e na serena disposição de resistir até ao fim.

Começava um pequeno drama que se prolongaria por 23 dias.

Quando recolhi confirmação da notícia, informei Blantyre da situação e das minhas disposições. Isso coincidiu com a chegada das minhas cartas para o Dr. Banda e para o Dr. Kaunda. Ambos me fizeram chegar palavras de encorajamento e apoio, assegurando que nada descurariam para me proteger. Recomendavam-me serenidade.

O Presidente Banda insistia comigo para não reisistir no caso de se concretizar um assalto à embaixada, mas respondi-lhe que não seguiria esse conselho.

O encarregado de negócios de Portugal no Malawi, Dr. Proença, foi convocado pelo presidente que em termos duros e firmes o intimou a advertir Lisboa das consequências que resultariam de uma violação da embaixada. O aflito diplomata assegurou que enviaria despacho urgente para o seu ministério e saiu da residência presidencial exteriorizando o pânico que dele se apossara, segundo me vieram a referir pessoas que o observaram.

No dia 23 (quinta-feira) pedi ao Gen. Diogo Neto para me visitar que não tardou em o fazer. Invocando a nossa camaradagem de Angola descrevi-lhe a situação em que me encontrava (que não negou existir) e pedi-lhe que informasse os responsáveis de que não só me não entregaria, como estava disposto a resistir até à última granada e até à penúltima bala.

Assegurou-me que iria imediatamente procurar o Gen. Costa Gomes e rogou-me que mantivesse a serenidade, acrescentando "não seja doido, como o foi em Angola". Só respondi que pensava comportar-me como em Angola ambos o tínhamos feito. Despedimo-nos com um abraço.

Fui recebendo outras visitas e, a partir de 24, passei a ter a companhia quase permanente do jovem William Kadzamira, irmão de Miss Cecila Kadzamira, o que me permitia falar livremente com Blantyre. William, que estudava engenharia em Lisboa, transmitiu as minhas mensagens usando dos dialectos "chichewa" e "tumbunco", alternando-os durante a conversa. Era cifra garantida para vencer a escuta telefónica a que estávamos submetidos.

O Governo do Malawi assegurava-nos que tinha recebido as mais formais garantias da embaixada de Portugal quanto à inviolabilidade da nossa embaixada em Lisboa e continuava a recomendar-nos serenidade. Nunca deixámos de a manter.

Presumo que em consequência destas pressões diplomáticas recebi a visita do comandante da Polícia de Segurança Pública (Maj. Casanova Ferreira) que foi extremamente correcto e, mesmo, simpático. Garantiu-me ter tomado disposições para proteger a residência e forneceu-me os telefones para onde poderia ligar em caso de emergência.

Decorreu o tempo e, no último dia do mês, o nosso "código" de Blantyre informou-nos que chegaria a Lisboa, o embaixador Joe Kachingwe, alto comissário do Malawi, em Londres, e qque estava designado para embaixador em Portugal.

Era um bom amigo meu, com passado profissional notável e que se distinguira na difícil missão de representar diplomaticamente o Malawi em Pretória.

O Presidente Banda não podia ter escolhido enviado com mais categoria.

O embaixador Kachingwe disse-me ser portador de carta pessoal do Dr. Banda para o gen. Spínola, na qual se solicitava que, na companhia daquele diplomata, se autorizasse a minha saída para Londres de onde me deslocaria para o Malawi. Dava a garantia de eu ali permanecer sem interferir na política moçambicana.

Kachingwe já dispunha dos bilhetes de avião e pedia-me para estar pronto a acompanhá-lo na segunda-feria imediata.

Garantias dadas ao embaixador
Logo a seguir (sábado, 1 de Junho) o Presidente da República recebeu, em Belém, o embaixador do Malawi que foi acompanhado na entrevista por um funcionário do protocolo. A audiência decorreu das 11 às 12 horas.

O Gen. Spínola foi muito cortês e agradável, pedindo para transmitir ao Dr. Banda as mais completas e tranquilizadoras certezas sobre a minha segurança. Afirmou não compreender a situação de alarme criada, porque "nada existia pessoal, política ou criminalmente" contra mim. Apenas se considerava que, de momento, não convinha que eu saísse de Portugal, mas que era livre de me deslocar por todo o território, sem que as autoridades me incomodassem.

Ao relatar-me isto, o embaixador estava desorientado.

Até parecia que eu tinha querido provocar um acidente, forçando intervenção de tão alto nível, uma vez que o Presidente da República afirmava ao representante qualificado de outro chefe de estado que não existia o problema que eu denunciara. Estava surpreendido e não sabia que relatar ao Presidente Banda, no seu regresso a Blantyre.

Convidou-me para ir jantar com ele no "Ritz". Recusei-me terminantemente a fazê-lo por ter a certeza quanto à veracidade das minhas informações. Quase que ficou magoado comigo e saiu com o William. Na manhã seguinte partiria para Londres.

Cilada e cerco

Ainda o embaixador não haveria terminado os aperitivos, quando notei desusado movimento de viaturas junto da embaixada. Dela saíram vários indivíduos, todos à paisana, que interrogaram o porteiro sobre se eu ali estaria. Este, que vira sair o embaixador acompanhado, informou que eu estava ausente e os sitiadores, para melhor me referenciarem, mostraram-lhe um mandato de captura em que figurava o meu retrato.

Estranhando tal aparato (com ostensiva fiscalização das pessoas ou viaturas que entravam no prédio) um dos inquilinos interrogou o porteiro e teve dele a explicação do que estava sucedendo. Esse vizinho, quase desconhecido para mim, teve a preocupação de vir avisar-me para que estivesse prevenido.

Telefonei para a PSP, de acordo com as indicações que me dera o Maj. Casanova Ferreira, manifestando a minha estranheza por aqueles movimentos e pedindo uma intervenção esclarecedora. Poucos minutos tardou em chegar um carro patrulha, cujo chefe conversou com os sitiantes mesmo por baixo da janela do meu quarto. A embaixada ocupava o primeiro andar do edifício e o local era fortemente iluminado.

Vi, nitidamente, exibirem cartões de identificação e mostrarem um papel que tinha, num dos cantos, o meu retrato.

O oficial de serviço na PSP, a quem depois telefonei, disse-me tratarem-se de elementos da polícia militar e que ali estavam "em missão especial" pelo que em nada podia intervir.

Fui assistindo então, acompanhado por pessoa identificada, à chegada de viaturas que ocupavam os pontos de acesso ao exterior e bloquearam, mesmo, a entrada do estacionamento do edifício. Outros automóveis situavam-se nas esquinas mais próximas e falavam ruidosamente pela rádio.

Quase que me divertia com todo aquele aparato e preparei-me para o enfrentamento. Com gente daquela, a coisa não poderia ser dramática.

Entretanto, consegui contactar, pelo telefone, o embaixador Kachingwe e pedi-lhe para se meter num táxi, passando junto à embaixada sem se deter, para verificar a situação como os seus próprios olhos. O William, que regressou já tarde usando o carro da embaixada, deparou com o mesmo estendal fiscalizador.

Gastei a noite a fazer um relatório para o Dr. Banda que o William foi entregar ao embaixador no aeroporto.

Por mais incrível que pareça, tudo isto aconteceu. Não faltam as testemunhas idóneas.

Na imagem: General Spínola

Depois das solenes garantias dadas pelo Gen. Spínola ao enviado especial do Presidente do Malawi, tudo havia sido organizado para me prenderem se eu tivesse a ingenuidade de sair do edifício.

O Presidente da República não tinha, obviamente, mentido e não estava ao corrente desta cilada.
Tudo parecia arquitectado para criar ao Gen. António de Spínola situação extremamente delicada, em consequência da minha prisão depois das inequívocas afirmações que fizera ao embaixador Kachingwe. Quando eu regressasse desprevenido a casa, encontrar-me-ia perante a cilada e teria de submeter-me, sem reacção possível, aos imponentes efectivos que ardilosamente me aguardavam.

Existem testemunhos identificados de que as ordens foram dadas, sem qualquer dúvida, pelo Gen. Costa Gomes.

Muito mais grave do que faltar à palavra dada é, ainda, criar essa aparência a quem a tenha dado honestamente.

O cerco prolongou-se com reforço de meios, com a ocupação de andares em prédios vizinhos de onde atiradores armados vigiavam os nossos movimentos, com a ostensiva instalação de viaturas que serviam de dormitório aos guardas que se revezavam, com a perseguição aos carros dos visitantes que entravam no prédio e com ameaças do corte de electricidade e da água. Um rosário de provocações que traduzia o desequilíbrio de frustrados e a inexperiência de aprendizes de militares que nunca se haviam batido.

O William informava Blantyre de tudo a quanto assistia e o governo do Malawi ia tornando cada vez mais afligida a posição do pobre Dr. Proença que não fora fadado para tais andanças.

A fuga perfeita
Ao longo destas semanas eu tinha estudado meticulosamente, e cronometrado mesmo, os movimentos dos sitiadores. Gastei nisso muitas noites de vigília.

Quem se tinha escapado de Bakwanga (no Congo) e enfrentado a perseguição da polícia indiana (em Bombaim e em Goa) não podia conformar-se em ceder perante um bando inexperiente.

Depois de estabelecer contacto com amigos de confiança (a quem um dia espero poder nomear para lhes prestar a homenagem que merecem) escolhi o ponto de passagem da fronteira. Seleccionei a região de Castelo de Vide por ser a mais fácil de transpor (com as suas serranias e pinhais) e, portanto, a menos propícia à eventual perseguição por gente não afeita à luta no mato. Mesmo no caso de me descobrirem, todas as vantagens, no confronto, seriam a meu favor.

Obtivemos cartas detalhadas do terreno, fizeram-se fotografias paronâmicas da fronteira, prepararam-se viaturas e recebi os meios de orientação indispensáveis. O percurso por estrada foi estudado e reconhecido, com confirmação efectuada menos de 24 horas antes do dia "D".

Como as luzes, fortíssimas, da rua da embaixada eram cortadas exactamente às 5.30 e como a guarda era rendida às 6.30, decidi que a hora precisa da fuga seria às 5.32. Beneficiaria da penumbra matutina, que mal consentia divisar os contornos a duas dezenas de metros, e da fadiga dos vigilantes que, para mais, deviam estar saturados por sucessivas guardas inúteis.

Escolhi a noite de 12 para 13 de Junho (noite de Santo António) que antecedia a celebração do Corpo de Deus, tão respeitada pela província fora.

Na imagem: Antigos Paços do Concelho de Viana do Castelo

Montei, então, a farsa mais completa, convencendo mesmo os mais íntimos familiares (como meu irmão e minha filha) de que estava conformado e não tentaria escapar-me. Sob vários pretextos afastei toda a gente da embaixada. O William foi passar uns dias a Braga, com uns amigos. Fiz telefonemas (que sabiam serem escutados) marcando encontros para a semana imediata e até nisso envolvi a minha crédula irmã que se encontrava em Viana do Castelo.

Tive duas preocupações: ninguém poder ser acusado de cúmplice e ninguém conhecer os meus planos de fuga.

O esquema foi executado com precisão matemática e cruzei a porta da embaaixada (com inteira exactidão, às 5.32) apertando na mão uma granada ofensiva a que tinha retirado a cavilha de segurança. Felizmente que a tornei a colocar no engenho. Estava, porém, disposto aos últimos extremos. Sob as roupas levava o armamento de que dispunha e tinha no cinto duas granadas defensivas, mortais num raio de 50 metros.

A conjugação dos movimentos das viaturas foi impecável ao longo do percurso e a nossa tranquilidade era tal que, ao passarmos por Abrantes, não resistimos a tomar um café no estabelecimento que encontrámos abertos. Depois, e por insistência minha, alterámos o percurso previsto e passámos por Portalegre (terra onde me criei e onde muitos julgam haver eu nascido) que não queria deixar de voltar a ver. Encaminhei o itinerário por caminhos que recordava dos descuidados tempos da juventude e fui "largado", ficando entregue a mim próprio, numa estrada que corre paralela às serranias da fronteira.

Por erro de avaliação (o único cometido) os meus amigos lançaram-me a uns três quilómetros do ponto previsto. A partir daí, e por mais fiel que me mantivesse aos azimutes dados, tinha de me enganar no destino. Já havia sofrido erros parecidos nos lançamentos de pára-quedas mas, desta feita e nestas condições, as consequências foram muito duras.

Quase ia tropeçando numa brigada florestal que, apoiada por guardas fiscais, trabalhava na abertura de uma estrada de serviço. Evitei-os por escassas dezenas de metros. Não deram por mim, mas vivi momentos angustiosos. Não tinha dúvidas de que forçaria a passagem sem dificuldade de maior, mas custava-me causar vítimas inocentes. Nem sequer era igual a luta entre esses funcionários fronteiriços e um homem curtido no mato africano. Tivemos muita sorte em não terem dado por mim.

A escalada da serra foi penosa, até atingir a linha da fronteira, e só me aguentei abusando da “coramina” e animado pela vontade de voltar a África.

Atingida a outra vertente da montanha, já em território espanhol, penso que devo ter corrido como um louco. Só parei num riacho junto ao qual inutilizei o material de defesa que levava comigo, enterrando-o cuidadosamente. Não queria ser encontrado com armas e pretendia evitar algum acidente se alguém as descobrisse.

Deambulei quase dez horas, por montes e vales, para encontrar o ponto fixado para o encontro com o carro que me aguardava. Se não tivesse sido o apoio hospitaleiro de boa gente local nunca mais teria lá chegado.

Nessa noite alcancei Madrid e descansei profundamente numa “suite” do “Hotel Ritz” (tinha o número 530) depois de ter telefonado para Lisboa, a dar conta aos meus, do êxito da fuga. Nem queriam acreditar. Pouco depois, na Beira e em Blantyre, estavam informados da minha nova situação.

Os que me vigiavam, em Lisboa, mantinham a guarda à embaixada. Só se deram conta do meu desaparecimento pelos jornais.

Estava concluída a “operação perfeita”.

Algumas reacções
As reacções foram das mais variadas, de acordo com a cuidada reconstituição que consegui fazer ao longo dos meses.

Soube que o Gen. Costa Gomes, que se ausentara para Bruxelas em viagem de serviço, não gostou e nem escondeu a sua preocupação. Isso só aumentou o meu prazer.

O Gen. Spínola, revelando o espírito de cavaleiro que sempre nele foi característico, tomou a coisa com desportivismo comentando que “era de esperar que esse tipo fizesse uma dessas”.

Quanto ao Presidente Banda limitou-se a afirmar, sorridente: “esse Jardim, ou o matam logo ou acaba sempre por se escapar, não podiam esperar o contrário”.

O aliviado Dr. Proença, que tão maus bocados passara, cruzou toda uma recepção oficial para abraçar Pombeiro de Sousa e segredar-lhe que “o nosso amigo conseguiu fugir”. Fez logo conjecturas sobre as cumplicidades que o teriam permitido. Como de costume não acertou, na verdade.

Na Beira, quando a rádio deu a notícia, houve regozijo geral e até se esboçaram manifestações nas ruas.

Meditação
Os dias de retiro que passei na embaixada foram em grande parte preenchidos com a meditação da grave crise que se desenhava.

A pureza e bons propósitos iniciais do “Movimento”, que lhe concederam a adesão das massas populares, resvalavam, visivelmente, para o pântano em que viria atolar-se.

O simbolismo alegre das flores desaparecia, ao mesmo tempo que os cravos iam murchando. E quando murchavam, a cor vermelha saltava mais à vista em semelhança mórbida com sangue que seca sobre os cadáveres quando deixa de jorrar das feridas.

Lembrei-me que em África também as flores murcham. E murcham muito mais depressa.

Quando Abril finda, começa, naquelas paragens, o cacimbo. É a época de menos calor e menos mosquitos, que os visitantes preferem para ali aparecer a explicar-nos tudo quanto sabiam e nós ignorávamos, sobre a África em que vivíamos.

A partir de então raro chove e até as picadas ficam transitáveis. Sem a chuva as flores murcham depressa. Com o fim de Abril não há flores em África.

Avizinha-se a época das queimadas (ob. cit., pp. 239-255).

Continua