terça-feira, 4 de setembro de 2012

Portugal e os Americanos (i)

Escrito por Miguel Bruno Duarte


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«O que está em discussão é saber a razão porque os embustes comunistas se difundem com tão surpreendente rapidez e se infiltram, clandestinamente, em todos os países, dos mais pequenos aos maiores, e independentemente do grau da sua civilização ou da sua situação geográfica. Certamente, é porque existe uma ciência propagandística, criminosa. Jamais a memória dos homens recorda uma propaganda tão penetrante. E tal propaganda provém de um Centro único; adapta-se, habilmente, às situações particulares de todos os povos: utiliza enormes meios financeiros, inúmeras organizações, frequentes congressos internacionais, tropas compactas e disciplinadas. Esta propaganda recorre aos jornais, cinemas, rádio; utiliza ainda escolas elementares e universidades; penetra pouco a pouco, em todos os meios, inclusive os melhores que, porventura, não se aperceberam do veneno que corrompe, cada vez mais e lamentavelmente, os espíritos e os costumes. É o exército de Satanás sobre a Terra. De certa forma é o próprio Satanás, o inimigo de Deus e dos seus filhos».


Papa Pio XI («Divini Redemptoris»).



No livro intitulado Nixon e Caetano, Freire Antunes, um investigador universitário especializado nas relações entre os Estados Unidos e Portugal, regista que a revolução de 25 de Abril de 1974, na sua marcha triunfante para o socialismo, saíra à rua ao abrigo de uma canção-código (Grândola Vila Morena), «em imitação do que tinham feito as tropas de Augusto Pinochet no Chile» (1). Por outras palavras, o modelo revolucionário houvera sido inspirado, ainda que num contexto de sinal ideológico contrário, no «Libro Blanco editado em Santiago para justificar o derrube de Allende». Ou seja: se em Portugal a revolução fora feita para implantar de vez o comunismo, no Chile, com Pinochet, emergira uma contra-revolução para, nos termos de uma ditadura militar, debelar a violência revolucionária comunista em curso.

Não é, pois, por acaso que os poderes e organizações internacionais estivessem, já então, praticamente conjugados no sentido de preterir e pôr fim a oitocentos anos de história e missão portuguesas no mundo, independentemente do regime existente. E quando dizemos independentemente é porque, não obstante tais poderes atentarem, é certo, contra o regime situacionista em causa, quem sofreu o desapiedado golpe foi, na sua essência, o homem português cuja expressão ecuménica e universal, por mais imperfeita que fosse em sua concreta e vivida realização, era de facto e de direito secularmente lídima. Tanto assim que, a não intervirem ilícita, abusiva e criminosamente tais poderes internacionais, não teria sequer havido, militarmente falando, revolução alguma em Portugal.

De uma maneira difusa e geral, a historiografia marxista que perpassa e invade as escolas e universidades, omite, conscientemente ou não, que a Europa nórdica tenha, por exemplo, directamente agido e conspirado para, a par da ONU e da União Soviética, lançar fogo ao Ultramar português com base no financiamento de acções terroristas, tal como se pode comprovar compulsando a obra acima referida e por demais documentada de José Freire Antunes. Temos assim o caso dos países nórdicos, como a Suécia, a Noruega e a Dinamarca, com seu financiamento ilícito à Frelimo, a par da solidariedade da Igreja Católica em prol de um falso e concertado ambiente internacional alarmista, conforme segue:

«Os protestos na comunidade internacional não cessaram. O Papa Paulo VI solidarizou-se em Julho com missionários espanhóis que tinham escrito o relatório [sobre o massacre de Wyriamu]. O Secretário-Geral das Nações Unidas, Kurt Waldheim, recebeu Hastings em Nova Iorque e mostrou-se indignado com os genocídios. O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Suécia, Krister Wickman, anunciou em Agosto a duplicação do financiamento à FRELIMO. Willy Brandt reconheceu oficialmente em Setembro o movimento de Samora Machel. Entretanto, os pelotões da FRELIMO, passaram a manejar rockets de 122 mm, de origem soviética, tentavam bloquear a linha de comunicação Beira-Salisbúria e praticavam o assassinato selectivo de líderes tribais favoráveis a Portugal» (2).

Na imagem: Paulo VI, o "Papa comunista"

Consequentemente, enquanto a Frelimo, sobretudo depois da morte de Eduardo Mondlane, conjugava o apoio político e militar proveniente de Moscovo e Pequim com significativas aproximações a Washington, as nações nórdicas, nomeadamente a Suécia, constituíam, por sua vez, a «fonte de apoio material no Ocidente» (3). Quanto ao Vaticano, o Papa Paulo VI, subjugado à pressão maquiavélica da ONU e, mais que tudo, à estratégia e à propaganda terceiro-mundista da União Soviética, colaborou com o inimigo ao receber em Roma, em sinal de reconhecimento político e independentista, os dirigentes rebeldes Amílcar Cabral, do PAIGC, Agostinho Neto, do MPLA, e Marcelino dos Santos, da FRELIMO (4). Quanto à ONU, em especial, também ela se dispôs, em clara concertação mundialista, a receber e a apoiar directamente os dirigentes rebeldes, como no caso de Amílcar Cabral, que chegou, inclusivamente, a discursar perante o plenário das Nações Unidas, organização, aliás, que também se prontificou a admitir o PAIGC como membro associado das suas agências especializadas (5).

Não há dúvida de que o PAIGC recebia considerável e significativo armamento da União Soviética, causando ao Exército português crescentes dificuldades defensivas (6), tal como também, por outro lado, não restam dúvidas sobre «o auxílio prestado pela UNESCO a membros da FRELIMO e do PAIGC, no âmbito de um programa de assistência aos refugiados de guerra» (7). Por outro lado, enquanto a UNITA de Jonas Savimbi, um bacharel formado na Suíça, recebia apoio de Pequim por oposição ao influxo soviético sobre o MPLA (8), Marcelino dos Santos, intelectual activista formado em Lisboa, bem como Samora Machel, instruído em Argel na técnica de guerrilha, protagonizaram, com Uria Simango, um triunvirato cuidadosa e heterogeneamente manobrado por Moscovo (9). Nisto, também Eduardo Mondlane mantinha claros contactos com o bloco comunista, muito embora tivesse estudado e ensinado nos Estados Unidos, na Universidade de Siracusa (10).

Entretanto, não deixa de ser igualmente significativa a sombra da Maçonaria no novo contexto então emergente quanto ao destino histórico de Portugal, conforme atesta a seguinte passagem:

«O caminho da paz na Guiné era potenciado por dois factores confluentes. Em primeiro lugar, os contactos clandestinos que desde 1970 foram estabelecidos, com o conhecimento de Caetano, entre o comando de Spínola e a direcção do PAIGC. Além da sua consciência sobre a invencibilidade da guerra, Spínola reconhecia o pragmatismo de Cabral, um homem que distinguia a luta nacionalista de sentimentos anti-portugueses e era tido como um “assimilável” pelos arautos da autonomia em África. Spínola estava mesmo fascinado pela estatura política do líder do PAIGC e seu principal inimigo (o mesmo tipo de fascínio que Nguyen Van Giap inspirou a alguns americanos) e começou em 1971 a considerar Cabral “um moderado e um amigo de Portugal”. A abordagem exploratória entre Spínola e o PAIGC, sem carácter regular e obviamente marcada pela desconfiança mútua, conduziu à deliberação do plano de cessar-fogo discutido na reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional.

Na imagem: Le Grand Orient de France (GOF).

O segundo catalisador da paz na Guiné era a forte vontade de Senghor em agir como mediador. Poeta de renome, o Presidente da República do Senegal foi paladino de uma nova realidade geopolítica (a Euráfrica), mostrava orgulho na sua ancestralidade lusíada (Senghor é a derivação nativa da palavra “senhor”) e defendia uma convergência de tipo confederal, envolvendo Portugal (na sua dimensão pluricontinental) e o Brasil. Senghor era também um membro da Maçonaria dependente do Grande Oriente de França. Um membro do clandestino Grande Oriente Lusitano diz que a “luz verde” para uma mudança de atitude dos maçons portugueses quanto à independência dos territórios de África foi dada pelo Grande Oriente de França: “Repare, por exemplo, nas posições tímidas que a CEUD defendia, em 1969, acerca do dramático problema africano. A viragem deu-se efectivamente a partir das novas directrizes do Grande Oriente de França. Era então Grão-Mestre Fred Zeller”. A teia multinacional da Maçonaria explica também o maior intervencionismo de Senghor, que começou por incitar as autoridades do Brasil a impulsionarem a projecção da comunidade luso-afro-brasileira. Mais tarde, usando os canais da PIDE/DGS, dado que Lisboa e Dacar tinham cortado relações diplomáticas, propôs a Spínola um encontro no mar, fora das águas territoriais do Senegal e da Guiné. O Governo, a pretexto dos riscos para a segurança pessoal do general, não autorizou a cimeira» (11).

Por outro lado, também é verdade que, com a Administração Kennedy, os americanos, no dizer de Oliveira Salazar, estiveram «ingenuamente a fazer o jogo dos russos» (12). Senão vejamos:

«Conquistar “os corações e as mentes” do Terceiro Mundo era uma prioridade de Kennedy. O Presidente transpôs para a luta personalizada com Khruschev o ardor competitivo da sua educação familiar e a sua obsessão de “ser o primeiro”. Perante a multiplicidade de crises em África e na Ásia, e face à popularidade do comunismo, tratava-se de vencer os soviéticos no próprio jogo em que eram mestres: a subversão de países estrangeiros. Na primeira reunião do Conselho de Segurança Nacional, em 1 de Fevereiro, Kennedy ordenou a MacNamara que desse relevo às doutrinas de contra-subversão no programa do Pentágono. Formou-se um Special Group para as questões de insurgency, que incluía Robert Kennedy e Maxwell Taylor, Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, e surgiram os Green Barets, uma força de élite que atingiu rapidamente 12 000 membros. A mobilização foi geral: mais de 10 000 diplomatas americanos e mais de 7 000 estrangeiros receberam cursos de contra-subversão durante a Administração Kennedy. Este novo espírito traduziu-se também na criação do Peace Corps, uma espécie de liga de missionários do idealismo americano, onde se alistaram muitos jovens para acções de humanitarismo em países do Terceiro Mundo» (13).

Mais lapidarmente, no que toca ao apoio americano aos movimentos de guerrilha em África, considere-se a seguinte passagem:

«A política dos Estados Unidos em relação a Portugal e às possessões de África foi entre 1961 e 1963 a expressão de dois vectores dramaticamente conflituais. Por um lado, sob iniciativa directa de John Kennedy, um simpatizante da causa emancipalista no Terceiro Mundo, Washington apoiou política e financeiramente movimentos de guerrilha em Angola e Moçambique. O apoio americano, canalizado de forma secreta, recaiu sobre a UPA, mais tarde GRAE e depois FNLA, chefiada por Holden Roberto (14), e também sobre a MANU, antecessora da FRELIMO, liderada por Eduardo Mondlane. No seu esforço para debelar a resistência de Salazar, os Estados Unidos combinaram os ataques públicos à orientação africana de Lisboa, a coacção diplomática e a intervenção clandestina» (15).

Na imagem: Jacqueline Kennedy e Charles de Gaulle

Uma viragem, por parte dos Estados Unidos, pareceu ocorrer a favor de Portugal quando Oliveira Salazar recebe, a 2 de Março de 1965, o príncipe de Radziwill, vulto influente no mundo dos negócios e bastante íntimo dos Kennedy, sobretudo por via do seu casamento com uma irmã de Jacqueline Kennedy. Entre outros pontos decorrentes da aparente viragem, está, supostamente, o fim do «auxílio [americano] a chefes terroristas de Angola ou Moçambique, feito por instituições privadas norte-americanas, designadamente a Fundação Ford», assim como o apoio na ONU à posição portuguesa no contexto ultramarino (16). Enfim, isso e muito mais sob a forma de uma mensagem de que Radziwill estava sendo o secreto intermediário, porquanto partia ela de Roswell Gilpatric, o qual, por seu turno, mantinha na «Administração Johnson os contactos e a influência de que desfrutava na Administração Kennedy».

Sobre Gilpatric, diz-nos Franco Nogueira que, depois de ter sido, durante três anos, vice-ministro da Defesa da Administração Kennedy, veio a Lisboa, em Agosto de 1964, como emissário americano de «alta categoria, rápido e lúcido», com uma compreensão que excede a de Anderson, na altura embaixador dos Estados Unidos em Portugal (17). Longamente recebido por Oliveira Salazar, Gilpatric é convidado, em missão tida por secretíssima, para visitar Angola e Moçambique com vista a observar a acção de Portugal em África, a par da respectiva situação no continente. Diz-nos mais uma vez Franco Nogueira:

«De retorno de Angola e de Moçambique, concluída a sua visita, Gilpatric está em Lisboa em meados de Setembro de 1964. Confessa-se altamente impressionado. Afirma Gilpatric: há sociedades civilizadas em Angola e Moçambique; é elevado o nível da administração e grande a competência dos técnicos; é forte o moral das tropas; é excelente o sistema de educação; há um sentimento geral de contentamento, sem embargo de críticas ao governo; teve o sentimento de que se trata de sociedades abertas, apesar de cercadas de perigo; há uma boa rede de aeroportos; é tremendo o potencial económico de Angola, enquanto Moçambique é mais território de trânsito e de serviços; e os cônsules americanos em Angola e Moçambique apenas relatavam para Washington o que sabiam agradar ao Departamento de Estado, como comprovou pela leitura dos seus despachos. Quanto a aspectos de segurança? Gilpatric não tem dúvidas de que é preciso traçar e defender um cordão sanitário que passa pelas fronteiras norte de Angola e de Moçambique e que, se não conseguir abranger a República do Congo, tem de incluir pelo menos a Zâmbia, o Malawi, a Rodésia do Sul e toda a demais África Austral. É nesta base que se propõe redigir o seu relatório e elaborar as suas recomendações ao presidente Johnson» (18).

Mais adiante, prossegue Franco Nogueira:

«Regressa a Washington o enviado confidencial do presidente Johnson. Em Lisboa, há a convicção de que, pelas suas ideias e pela sua visão dos acontecimentos e dos interesses dos próprios Estados Unidos, Gilpatric ficou em condições de entender a política africana de Portugal, ou, pelo menos, de a justificar perante o seu governo. E efectivamente o relatório que Gilpatric entrega em Washington é favorável em extremo; não o ocultam altos funcionários da Casa Branca e do Departamento de Estado. Para Gilpatric, aparecem claras as conclusões: do ponto de vista da segurança dos Estados Unidos, a continuação de Angola e Moçambique como parte da Nação portuguesa é preferível a qualquer outra alternativa previsível; o abandono por parte de Portugal criará um vazio perigoso que pode levar a uma confrontação séria entre potências africanas, e não africanas; não há motivo para pensar que a política africana de Portugal se modificará nos tempos mais próximos, nem que tenham qualquer efeito nesse sentido os esforços ou pressões exteriores, ainda que provenientes dos Estados Unidos; a situação económica e social de Angola e Moçambique, no contexto africano, é de franco progresso, e só por si constitui base para uma ulterior autonomia ou independência a longo prazo; e aos Estados Unidos, em face de tudo, cumpre reorientar a sua política e, sem negar os seus princípios, deixar de seguir cegamente a hostilidade afro-asiática contra Portugal. No plano prático, e como sinal de boa-vontade dos dois lados, algumas atitudes poderiam e deveriam ser modificadas: Portugal renovaria as facilidades concedidas nos Açores e encararia outras suplementares; os Estados Unidos levantariam as restrições ao fornecimento a Portugal do material de guerra que este desejasse, ficando Lisboa livre de o usar onde quisesse. No plano interno norte-americano, o relatório Gilpatric provoca a cólera da secção africana do Departamento de Estado, em especial de Mennen Williams e Harriman. Mas tem a receptividade de Rusk, de Ball e, sobretudo, do Conselho de Defesa da Casa Branca. Simplesmente, o presidente Johnson não encontra oportunidade, com os seus conselheiros, de se debruçar sobre o documento Gilpatric: o seu interesse pelas questões de África, se comparado ao de Kennedy, é mínimo: para mais, como candidato que é, está embrenhado na campanha para a eleição presidencial norte-americana, a realizar dentro de semanas. E não são palpáveis as consequências imediatas da viagem de Gilpatric» (19).

Posto isto, compreende-se que Oliveira Salazar tenha escrito, por sugestão do Príncipe Radziwill, uma carta a Gilpatric, onde expõe as duras mas objectivas razões das queixas portuguesas no declinante contexto das relações luso-americanas, entre as quais o apoio financeiro aos terroristas por parte de organizações privadas americanas, a desinformação e a hostilidade de certos responsáveis americanos a respeito de Portugal e sua política ultramarina. Uma carta, para mais, reveladora da lucidez na pessoa impoluta de Oliveira Salazar no desconcerto das relações internacionais. De qualquer modo, a testemunhar a dita e referida lucidez, estavam «os perigos que – nas palavras de Franco Nogueira – rodeiam o continente», ao agravar-se «de novo a situação no Congo (Léopoldville)». Ou seja:

«Ganham terreno os rebeldes, recompostos das derrotas sofridas, e em Léopoldville o presidente Kasawubu, que nomeara o político catanguês Tschombé para o cargo de primeiro-ministro, entregava-se agora a manobras contra este, havendo notícias de um seu entendimento com aqueles enquanto, por outro lado, alguns chefes do exército nacional pensam num golpe que lhes dê o poder. Tshombé ausenta-se do Congo, passa em algumas capitais africanas, e a Lisboa chegam notícias de que, em desespero de causa, o primeiro-ministro está pronto a um acordo com os rebeldes que incluiria mesmo um entendimento com os grupos terroristas que têm atacado o Norte de Angola. Em Lisboa, há notícia, de fontes internacionais, de que por detrás de Kasawubu e dos militares estão americanos, cujo objectivo seria o de promover o regresso ao poder do grupo de Binza, ou seja dos políticos de velha guarda como Adoula, Ileo, Bomboko, outros ainda. De todos os modos, consultados os ministros competentes, Salazar resolve a suspensão de toda a ajuda portuguesa ao governo de Tshombé; e seja qual for a evolução futura da política congolesa, parece que Lisboa terá de adoptar a maneira dura – bloqueio da foz do Zaire, corte de comunicações e transportes, suspensão de abastecimentos, perseguição de terroristas para além da fronteira – se quiser que se tornem normais as relações de vizinhança entre Angola e o Congo» (20).

Já agora, fica também registado o que, para todos os efeitos, foi a penetração operacional da CIA no âmbito pan-europeu da Internacional Socialista, já que, segundo uma estratégia que se pretendia anti-soviética, financiava, entre outras, a Fundação Friedrich Ebert (21) que, por sua vez, enquanto instituição dependente do Partido Social-Democrata (SPD) da Alemanha Ocidental, financiava movimentos e partidos socialistas europeus, dos quais saiu, em 1973, o liderado por Mário Soares, Tito de Morais e demais comparsas do género. Agentes operacionais da CIA também os houve infiltrados na PIDE, como quando, por exemplo, o inspector Abílio Pires, que começara a trabalhar para os americanos com um vencimento mensal de 500 dólares, acompanhou Mário Soares à paradisíaca Ilha de São Tomé depois de o mesmo ter andado a manchar o nome de Portugal a pretexto de um escândalo sexual, conhecido por ballet rose (22). Até na Frelimo houve, segundo consta, elementos não-comunistas subsidiados pela CIA (23), cujo influxo parece ter abrandado com a crescente sovietização de guerrilheiros lançados contra a soberania portuguesa em Moçambique.

Além disso, não obstante a guerra no Ultramar, Portugal conheceu, entre os anos 50 e princípios de 70, o maior crescimento económico da sua história contemporânea. Tal crescimento coincidiu, pois, com o das economias europeias mais desenvolvidas, crescendo até mais depressa em contexto particularmente próprio (24). As razões do fenómeno podem, sem intento exaustivo, ser enumeradas da seguinte forma:

1. Resolução do problema financeiro e monetário na sequência do conflito da I Guerra Mundial.

2. Crescimento económico «disciplinado» com base no equilíbrio do Orçamento de Estado, sem, no entanto, estrangular a iniciativa particular.

3. Restrição, mediante o equilíbrio orçamental de Estado, da oferta monetária internacional para financiar os défices, assim como o controlo da inflação ou da emissão de papel-moeda.

4. Baixa das taxas de juro com vista a permitir o investimento agrícola e industrial, assim como para criar o clima de confiança necessária no plano do investimento empresarial.

5. O crescimento da poupança tanto pública (sustentada pelo equilíbrio orçamental) como privada, desde logo possível pelo incremento e desenvolvimento do sistema bancário, assim como pelo recurso às remessas dos emigrantes que haviam substituído o habitual entesouramento em prol de fundos de maneio, que, como tal, permitiam a livre circulação de dinheiro posto à disposição de investimentos empresariais os mais diversos.

6. O aumento da qualificação profissional com base no incremento substancial da «escolarização» primária, técnica e liceal, a par dos postos e regentes escolares instalados em aldeias, designadamente em igrejas, casas rurais ou lares simplesmente domésticos que pudessem oferecer, naturalmente, condições para o aprendizado das primeiras letras.

7. A abertura da economia portuguesa à economia europeia, com a adesão de Portugal, na condição de membro fundador, à EFTA, em 1959, mais a reservada participação no Plano Marshall (1947), que levou a que Portugal aderisse à Organização de Cooperação Económica (OECE), seguida da não menos significativa participação na União Europeia de Pagamentos (UEP), criada em 1950, e sem esquecer ainda o acordo comercial, em 1972, com a Comunidade Económica Europeia (CEE), já no tempo do consulado marcelista.

Enfim, um processo que, em grande medida, só fora possível devido ao facto de, terminada a II Guerra Mundial, Portugal ter podido participar e usufruir do gradual recurso europeu ao livre-cambismo, desde logo presente no “Acordo de Breton Woods”, que restabeleceu o padrão-ouro, e nas demais organizações económicas, algumas delas já acima mencionadas. Se quisermos, porém, ir mais fundo, nada melhor do que, por contraste, recuar no tempo, mais particularmente ao último conflito mundial, cuja extensão e respectivas consequências Oliveira Salazar - corria o ano de 1942 - traçava lúcida e concisamente nos seguintes termos:

«Sem ousar prever a extensão do conflito e todas as suas consequências, o governo definiu logo no primeiro momento a atitude que se impunha: manter na medida do possível a normalidade existente, e isso importava na vida económica o emprego dos máximos esforços no sentido da estabilidade da produção e dos serviços, da moeda e do crédito, dos preços, vencimentos e salários.

(…) A actual geração viveu a outra guerra e tem ideia das injustiças, desgastes, anulações de capitais mobiliários, ruínas materiais e morais que se acumularam com se abandonar a economia à mercê dos acontecimentos. Dessa vez parte das culpas puderam ser lançadas ao próprio facto da guerra em que intervínhamos activamente, agora só devíamos ser desculpados naquilo em que os acontecimentos são superiores à vontade dos homens. Não se podia repetir a dolorosa experiência.

Para nos mantermos fiéis à orientação geral da maior estabilidade possível, tornava-se necessário ter mão nos dois elementos donde nascem comummente as perturbações – a moeda e as coisas. Quanto à primeira importava não infringir as regras técnicas com que se defende o seu valor: que se lhes tem obedecido deduz-se do facto de o escudo ser hoje uma das moedas mais estáveis e sólidas de todo o mundo.

(…) Tornou-se evidente que com o sucessivo desaparecimento dos mercados, a diminuição da tonelagem estrangeira ao nosso serviço e a escassez e diminuição da nossa marinha mercante, a economia portuguesa tinha de ser impulsionada em duas direcções: refluir sobre si própria, explorando ao máximo as suas possibilidades, no Continente e nas Colónias –
produzir; tentar manter a estabilidade de condições em nível mais baixo, reduzir ao mínimo o consumo – poupar. Esta a admirável campanha do Ministério da Economia cujos termos se completaram mais tarde, acrescentando ser igualmente necessário organizar e distribuir. E o país lançou-se a trabalhar e viver no ambiente destas preocupações.

Confesso ter poucas vezes visto ideia tão bem compreendida, tão espontaneamente abraçada e seguida com tanto entusiasmo e carinho. Nós fomos sem dúvida favorecidos no que respeita aos géneros agrícolas, por este facto real, ainda que literalmente anti-económico, de que boa parte da nossa agricultura não é industrial, ou para ser mais claro, não trabalha para o lucro, produz para viver pobremente e alegremente gastar o excesso de outras rendas. Isto tinha particular importância no momento em que se teria de produzir mais e mesmo mais caro, sem sensível repercussão nos preços do que viesse ao mercado. Mais que paixão, o
vício português da terra fez prodígios: aproveitou-se a gleba, quase até ao centímetro, o jardim, a clareira da mata, o valado, o cômoro: parece nalgumas terras haver andares acima do chão.

Não foi só na agricultura e na pecuária o esforço; nas indústrias independentes do estrangeiro, sobretudo nas minas à busca de combustível, a produção fez progressos consideráveis, ao mesmo tempo que nos serviços públicos ou privados, em casa e na rua, na vida individual e familiar, a palavra de ordem se traduzia em restrições voluntárias, no aproveitamento das coisas inúteis, na disciplina dos consumos. – Produzir! Produzir e poupar!»
(25).

Contudo, retornando ao período do pós-guerra, é óbvio que outros aspectos, menos abonatórios, sobressaíam, como, antes de mais, o que imediatamente concerne ao que já Álvaro Ribeiro dizia ser a «esperança de quantos pensavam que o equilíbrio financeiro antecedia o planeamento económico, precursor do socialismo» (26). Quer dizer: o regime salazarista mantinha, a par de um nacionalismo político, um nacionalismo económico cuja intervenção impunha, através de regras de licenciamento industrial e empresarial, um condicionamento na «funcionalidade» dos mercados, condicionamento esse, aliás, praticamente obediente a uma política de planificação económica, como a que fora, durante 1953 e 1974, materializada nos chamados Planos de Fomento na direcção do investimento público. Subsecretário de Estado da Educação Nacional, entre 23 de Julho de 1949 e 8 de Julho de 1955, bem como Ministro das Corporações e Previdência Social, de 8 de Julho de 1955 a 4 de Maio de 1961, Henrique Veiga de Macedo também deixou escrito o quanto discordava do condicionamento industrial, como ora se segue:

«A legislação do condicionamento industrial (…), pelos seus princípios informadores e também pela sua aplicação, teve, enquanto vigorou, influência negativa no natural desenvolvimento da actividade económica do País» (27).

E mais adianta quando, apontando certos e determinados aspectos do intervencionismo económico, alega o carácter negativo da «manutenção dos organismos de coordenação económica (que, aliás, de corporativos e institucionais ou representativos, nada tinham), para além do período em que circunstâncias especiais, decorrentes da II Guerra Mundial, terão imposto a sua criação».Além de, por fim, ser não menos negativo, no dizer de Veiga de Macedo, o «congelamento dos salários e a contenção no desenvolvimento do trabalho e previdência nos anos do pós-guerra, até que, a partir de 1955, se tornou possível mudar de rumo».

Seja como for, é preciso não esquecer que o nacionalismo económico em causa obedecia a um ideário que se opunha, desde o momento e na situação concreta em que fora concebido, ao socialismo entendido na sua diametral oposição quer ao liberalismo do «deixar correr», quer ao individualismo materialista dele decorrente (28). Dele, pois, dá inequívoco testemunho Oliveira Salazar:

«Eu sou pelo nacionalismo económico, mas este nacionalismo – tão moderado que para nós é condição e base da melhor cooperação internacional – nem quer dizer socialização, nem caminha no sentido autárquico (que sempre considerei contrário à verdadeira economia), nem se afirma exclusivista em não aceitar ou achar boa a colaboração, aqui e no Ultramar, do capital estrangeiro. Simplesmente penso que as diferentes produções fazem parte integrante da economia nacional com o fim de serem aproveitadas em harmonia com a sua maior utilidade para a vida da população, e que é pelo menos imprudente deixar em mãos estranhas algumas das posições mestras da economia de um país. Acresce que em muitos casos – e precisamente nos mais importantes – a participação capitalista não usa desinteressar-se dos fins e da direcção do empreendimento. Eu sei que se fala muito de internacionalismo económico e de solidariedade e de cooperação entre as nações, mas não posso esquecer que, se há elementos de riqueza ou da produção que não interessam a uma economia estrangeira senão pelos benefícios do seu rendimento, outros tendem a ocupar, ainda no presente momento, dentro dessa economia, o lugar deixado vago na economia nacional. Um país que preza a independência tem de acautelar-se de criar pontos vulneráveis tanto nas suas finanças como na sua economia (28 de Março de 1948)» (29).

Daí a solução inicial e duradouramente preconizada de uma economia autodirigida, em que a intervenção do Estado, mantendo a iniciativa particular, procurava sobretudo evitar, impedir mesmo, que se criasse uma previdência social inteiramente estatizada, que o mesmo é dizer um socialismo de Estado em que toda a legislação, somente apostada em direitos, princípios e fórmulas de previdência enganosa, irreal e abstracta, aparecia como um perigo ameaçador e destruidor de «conceitos equilibrados, justos, humanos, de riqueza, de trabalho, de família, de associação, de Estado» (30).

Deste modo, previdência, sim, mas na condição de ir além de uma democracia destruidora dos «laços do corporativismo antigo que dava aos homens de ofício uma dignidade especial» (31), e, por isso, susceptível de dar azo à missão de uma Nação organizada na salvaguarda ora dos direitos individuais (não individualistas), ora de uma finalidade nacional superior capaz de harmonizar e defender a um tempo o homem do campo e o das cidades, o artesão e o industrial, o proletário e o burguês, para, enfim, tudo se poder encaminhar segundo um processo em que o Estado, ainda que à margem da produção económica, se mantivesse, embora, como árbitro face a todos os interesses conflituais existentes ou a existir (32).


Notas:

(1) Freire Antunes, Nixon e Caetano, promessas e abandono, Difusão cultural, 1992, p. 346.

(2) Ob. cit., p. 253.

(3) Ob. cit., p. 226.

(4) No que respeita ao financiamento moscovita de organizações internacionais supostamente ligadas à paz e à cooperação entre os povos, leia-se: «Cabral, Neto e Santos [aquando da recepção papal] encontravam-se em Itália a participar na Conferência Internacional de Apoio aos Povos das Colónias Portuguesas, destinada a mobilizar apoios entre organizações e governos da Europa. A União Soviética, através do Conselho Mundial para a Paz e Cooperação, um organismo ligado ao KGB, ajudou a financiar o encontro» (ob. cit., p. 230).

(5) Ob. cit., p. 197. Sobre o acolhimento e o patrocínio explícito das Nações Unidas a terroristas ao serviço do comunismo internacional, é de lembrar o caso paradigmático de Fidel Castro e Che Guevara, entre outros. Por lembrar fica ainda o facto de, a 2 de Novembro de 1972, a Assembleia Geral das Nações Unidas ter reconhecido, «por 95 votos contra 5, a “legitimidade” das lutas armadas contra Portugal», para além de ter apelado «a todos os países membros para cessarem qualquer tipo de assistência ao Governo de Caetano» (cf. F. Antunes, ob. cit., p. 224). Para mais, tudo se passando já depois do ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, ter afirmado, com toda a razão, serem as Nações Unidas uma organização “sem leis e sem regras”. É certo que houve alguma oposição política da parte de Washington no apoio da ONU aos “exércitos de libertação”, vinda sobretudo do embaixador americano nas Nações Unidas, George Bush. Ainda assim, a verdade é que o Fourth Committee acabou por reconhecer «os movimentos de guerrilha como os representantes legítimos dos povos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau», a par da reclamação para a «imediata transferência de poderes» (cf. ob. cit., p. 225).

(6) Ob. cit., p. 74.

(7) Ob. cit., p. 158.

(8) Ob. cit., p. 142.

(9) Ob. cit., p. 77.

(10) Ob. cit., pp. 58-59.

(11) Ob. cit., pp. 191-192. No contexto salientado, Maçonaria e socialismo andam, efectivamente, irmanados, como deixa, aliás, entrever Ramon de la Féria, um maçon de obediência francesa que foi, conforme adianta Freire Antunes, o intermediário para o encontro de Mário Soares e Melo e Castro, no sentido de o primeiro poder encabeçar, enquanto deputado à Assembleia Nacional, as legislativas de 1969 (ob. cit., p. 91).

(12) Cf. José Freire Antunes, Kennedy e Salazar, Difusão Cultural, 1991, p. 169.

(13) Ob. cit., p. 169.

(14) Ainda antes do início da guerra em Angola, em Março de 1961, Holden Roberto foi recebido nos Estados Unidos, mais propriamente no Departamento de Estado, em Dezembro de 1960. Posteriormente, foi ainda recebido na embaixada americana em Léopoldville e na delegação dos Estados Unidos junto das Nações Unidas. Mais: por parte da Administração Kennedy, nomeadamente do seu Secretário de Estado, Dean Rusk, foram dadas ordens para, de uma forma discreta, se intensificarem os contactos com o terrorista Holden Roberto.

(15) Cf. Nixon e Caetano, p. 52. Neste contexto, leia-se o seguinte: «A comunidade missionária foi outro canal de penetração da ideologia e dos interesses dos Estados Unidos. Adriano Moreira, durante um encontro em Lisboa, em Abril de 1958, com o então cônsul americano em Luanda, Richard V. Fischer, exprimiu a preocupação de que as actividades dos missionários protestantes em Angola fossem usadas para “fins subversivos”. O diplomata americano retirou da conversa com Adriano Moreira a conclusão de que a Igreja Católica movia uma guerra à influência protestante na África portuguesa e que seria difícil ao governo de Salazar não apoiar a Igreja Católica. (…) A educação básica de líderes nacionalistas angolanos como Holden Roberto, Agostinho Neto, Jonas Savimbi e outros ficou a dever-se aos missionários anglo-saxónicos. Agostinho Neto, filho do pastor metodista Pedro Neto e de uma professora da escola metodista, foi secretário do bispo metodista Ralph Dodge antes de cursar Medicina em Portugal; e a Junta Metodista de Missões Americanas financiou-lhe os estudos superiores. A Igreja Metodista, operando em Angola desde 1885, possuía missões em zonas cruciais – Baixa do Cassange, Luanda, Dembos – e dirigia em 1961 um total de 292 missões, com 42 missionários residentes e 124 pastores africanos, 125 escolas com 140 professores africanos e 10 000 estudantes, um hospital em Quessua e uma clínica em Luanda. Sabe-se que a Cover Up (disfarce público) de missionário era usada por operacionais da CIA em África. Cite-se o caso (não generalizável, embora), do chefe da task force para Angola, John Stockwell, que em 1975 vestiu a pele de missionário. Um dos centros de irradiação das actividades da CIA em Angola, em Março de 1961, era a estação de Léopoldville, a 330 milhas de Luanda» (cf. Kennedy e Salazar, pp. 172-73).

(16) Cf. Franco Nogueira, Salazar, Livraria Civilização Editora, VI, pp. 16-17.

(17) Sobre o “Plano Anderson” - que consiste numa «fórmula que satisfizesse a um tempo os interesses e a política norte-americana e persuadisse os portugueses a deslizar por um declive quase insensível mas que os levasse a aceitar os objectivos de Washington» -, salienta Franco Nogueira: «No Departamento de Estado, as sugestões do embaixador eram designadas por Plano Anderson. Mas Lisboa, embora conhecesse as ideias de Anderson, nunca as tomou em suficiente consideração para as olhar como um plano, nem essas ideias foram jamais apresentadas em Lisboa como tal. É quase certo que na altura Gilpatric e Anderson não possuíam conhecimento recíproco do que cada um fazia ou propunha. Lisboa mantinha confidência para ambos os lados» (ob. cit., p. 30).

(18) Salazar, Vol. V., p. 584.

(19) Ob. cit, pp. 585-587.

(20) Salazar, Vol. VI, pp. 25-29.

(21) Cf. J. F. Antunes, Nixon e Caetano, pp. 93-94.

(22) Cf. ob. cit., pp. 94 e 95. Curioso é igualmente o facto de a CIA e dos chefes da PIDE-DGS terem proporcionado a Mário Soares, sob mandato de captura, uma licença de 48 horas, em Portugal, para o funeral do pai. Um privilégio que Mário Soares bem pode sobretudo agradecer ao zelo policial do regime marcelista, até porque semelhante privilégio, só dado às «crianças mimadas e adoradas» (conforme expressão atribuída ao próprio por Raul Rego, «um seu velho amigo que atingiu o posto de grão-mestre da Maçonaria»), é obra quando comparada com o facto do Senhor Dom António, bispo do Porto, não poder atravessar a fronteira para o enterro da mãe (cf. ob. cit., pp. 91 e 185).

Tudo isto não é de estranhar se atendermos à cumplicidade pessoal e política entre Marcello Caetano e Mário Soares, desde logo manifesta quando ambos davam longas passeatas nos corredores universitários da Faculdade de Direito. E como não se até o próprio Marcello Caetano, tido por muitos como a primaveril personificação de uma tão falsa quão artificiosa «liberalização» política, social e económica em Portugal, se prontificou, na sua tomada de posse enquanto Presidente do Conselho de Ministros, a amnistiar em 68 Mário Soares cujo pai era, como se sabe, bastante íntimo do sogro então falecido de Marcello Caetano, um tal de João de Barros (ob. cit., p. 95-96). Mais: procurou, sem sucesso, que Mário Soares e sua respectiva pandilha pudessem ser eleitos nas eleições legislativas de 1969. Por fim, como seria de esperar, colheu os ventos semeados quando o autor de Portugal Amordaçado, depois de ganhar muito dinheiro como «advogado do diabo» e, com esse dinheiro, passar o Carnaval no Rio de Janeiro, tão logo seguido de uma visita às «principais capitais da Europa (Bona, Paris, Londres, Roma), onde a Internacional Socialista lhe dava assistência material e logística», atacou, já nos Estados Unidos, a política ultramarina do Governo português a ponto de ser-lhe atribuído, à revelia, um julgamento penal por actividades antipatrióticas coroadas de novo mandato de captura (ob. cit., pp. 184-85).

(23) Cf. ob. cit., p. 134.

(24) Cf. Luciano Amaral, «Convergência e crescimento económico em Portugal no pós-guerra», in Análise Social, vol. XXXIII, n.º 148, 1998.

(25) Oliveira Salazar, «Defesa económica, Defesa moral, Defesa política», Comunicação ao País, proferida ao microfone da Emissora Nacional, no dia 25 de Junho de 1942, edição do SNI, pp. 6-9.

(26) Álvaro Ribeiro, Memórias de Um Letrado, III, Guimarães Editores, p. 30.

(27) Cf. Jaime Nogueira Pinto, Salazar visto pelos seus próximos, Bertrand Editora, 1993, p. 56.

(28) Cf. As Ideias do Estado Novo (Corporações e Previdência Social), Conferência realizada na noite de 5 de Junho de 1933, no Teatro de S. Carlos, pelo Dr. Pedro Teotónio Pereira, Sub-Secretário de Estado das Corporações e Previdência Social, precedida das palavras pronunciadas por S. Ex.ª o Presidente do Conselho, Dr. António de Oliveira Salazar, que presidiu, pp. 12-13.

(29) O Trabalho e as Corporações no Pensamento de Salazar, Junta da Acção Social, «Biblioteca Social e Corporativa», Publicação n.º 11, Colecção II, Série A – n.º 1, p. pp. 41-42.

(30) As Ideias do Estado Novo (Corporações e Previdência Social), por Pedro Teotónio Pereira, p. 28. Demais, Salazar, quando entrevistado, em 1933, por António Ferro, diz de sua razão: «Esse socialismo de Estado, que muitos apregoam e aconselham como um regime avançado, seria, na verdade, o sistema ideal para lisonjear o comodismo nato e o delírio burocrático do comum dos portugueses. Nada mais cómodo, mais garantido, mais tranquilo, do que viver à custa do Estado, com a certeza do ordenado no fim do mês e da reforma no fim da vida, sem a preocupação da ruína ou da falência. O socialismo de Estado é o regime burguês por excelência. A tendência para esse regime, entre nós, deve, portanto, procurar-se mais no fundo, falho de iniciativas, da nossa raça do que noutras preocupações de ordem social. O Estado não paga muito mal e paga sempre. É-se desonesto, além disso, com maior segurança, com segura esperança de que ninguém repare. As próprias falências, os desfalques, as irregularidades, se há compadres na governação, são facilmente abafados e os «deficits» cobertos – regalia única! - pelos orçamentos do Estado. As iniciativas, por outro lado, não surgem, não progridem porque o patrão é imaterial, quase uma imagem. As coisas marcham com lentidão, com indolência, com sono» (cf. António Ferro, Salazar, ENP, 1933, pp. 64-65).

(31) Ob. cit., p. 25.

(32) Sobre este ponto, adianta Oliveira Salazar: «O Estado deve manter-se superior ao mundo da produção, igualmente longe da absorção monopolista e da intervenção pela concorrência. Quando pelos seus órgãos a sua acção tem decisiva influência económica, o Estado ameaça corromper-se. Há perigo para a independência do Poder, para a justiça, para a liberdade e igualdade dos cidadãos, para o interesse geral em que da vontade do Estado dependa a organização da produção e a repartição das riquezas, como o há em que ele se tenha constituído presa da plutocracia dum país. O Estado não deve ser o senhor da riqueza nacional nem colocar-se em condições de ser corrompido por ela. Para ser árbitro superior entre todos os interesses é preciso não estar manietado por alguns (16 de Março de 1949)» (in O Trabalho e as Corporações no Pensamento de Salazar, p. 161). Este trecho, como o que se segue, é, aliás, um tanto paradoxalmente a clara expressão do liberalismo económico de Salazar: «Sou absolutamente hostil a todo o desenvolvimento de actividade económica do Estado em todos os domínios em que não esteja demonstrada a insuficiência dos particulares. Admito, sim, e procuro a cada momento desenvolver a intervenção dos poderes públicos na criação de todas as condições internas ou externas, materiais ou morais, necessárias ao desenvolvimento da produção. Essa intervenção é, mercê de dificuldades da época e dos problemas postos pela economia moderna, não só necessária, como cada vez mais vasta e complexa. Qualquer economia nacional que se encontrasse desacompanhada e desprotegida soçobraria em pouco tempo. Mas isto dificilmente se pode chamar socialismo de Estado» (cf. António Ferro, Salazar, pp. 65-66).

Continua

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (xi)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


"AQUI MOÇAMBIQUE LIVRE"

Com o título "Aqui Moçambique Livre" publicou Ricardo Saavedra um livro que merece a pena ser conhecido e meditado, pela imagem viva que oferece da generosa revolta de Moçambique, em Setembro de 1974. Foi editado em Johannesburg e bem merecia, se possível, aparecer nos livreiros portugueses.

Não irei repetir, portanto, o que foi relatado por testemunhas presenciais. Limito-me a referir os contactos que tive com esse "Movimento", em que não participei.

Quando rebenta uma revolta
Na noite de 6 de Setembro, Gomes dos Santos telefonou-me de L.M., dando-me conta dos graves acontecimentos que ali se desenrolavam.

No Estádio da Matola reunira-se multidão excitada por palavras de ordem incendiárias, enquadrada pelos "democratas" e redigida por universitários extremistas. Aguardavam as declarações de Samora Machel que o Rádio Clube transmitiria de Lusaka. Perante a passividade das autoridades portugueses, que parecia haverem abdicado da soberania mesmo antes dos mandatários de Lisboa a haverem entregue, organizavam-se cortejos na cidade, desfraldando bandeiras da "Frelimo" em atitude mais provocativa do que jubilosa.

De súbito, uma carrinha parou no semáforo que fica na esquina junto ao café "Continental". Nela flutuava a bandeira frelimista mas, em ofensa inaceitável, arrastava no pavimento uma bandeira portuguesa já meio destroçada.

Foi esse o rastilho da explosão.

O "rebentar" de uma revolta nunca terá tido, porventura, representação mais realista.

Do desforço sobre a viatura e ocupantes, ao assalto aos jornais que mais se distinguiam pela propaganda anti-portuguesa, à destruição do restaurante da Associação Académica e ao incêndio da sede dos "democratas de Moçambique" tudo de passou vertiginosamente sob o impulso de nervos que não suportavam mais a tensão a que estavam submetidos.

Pouco depois anunciava-me explosão tremenda que abalara a cidade. O paiol de munições, no subúrbio de Benfica, tinha ido pelos ares. Nunca se soube quem a teria provocado.

Mantivemos contacto, até de madrugada, numa noite mal dormida.

A última informação que recebi, pelo telefone, era a de que a capital estava nas mãos do povo. Os manifestantes da Matola tinham-se escapulido. Nem havia rasto dos "democratas".

O povo, de todas as raças, tinha preenchido o vazio deixado pelas autoridades.

Gente anónima. Gente descontrolada. Gente generosa.

Surgira, espontaneamente, o "Movimento de Moçambique Livre".

Nada fora planeado e nada estava organizado.

Só semanas depois vim a saber, por pessoas identificadas e idóneas, que o acto provocador do arrastar da Bandeira Nacional (em pleno centro da cidade) fora premeditado e pago para se obter a reacção que convinha desencadear.

Isso foi confessado, a oficiais portugueses, pelo maltratado condutor da viatura. Tinham-lhe pago 20 mil escudos!

Recebera o dinheiro de um intermediário que nunca foi possível identificar com absoluta certeza. Por detrás dele, forças ocultas actuavam.

Notei a estranha semelhança com os acontecimentos da Beira, em Janeiro de 1973, também provocados na exploração de sentimentos generosos.

Mas desta vez ia ser mais sério.

Os provocadores não devem ter avaliado, correctamente, as forças que tinham desencadeado. (...)

Porque não entrei em Moçambique

De Blantyre, Pombeiro de Sousa insistia pelo meu regresso.

Na imagem: Joanesburgo (África do Sul)

A permanência em Johannesburg poderia fazer crer que eu estava ligado à rebelião.

Mark Chona tinha-o contactado pelo telefone e, alarmado com o que acontecia, sugeria que eu fosse a Lusaka para usar a "Voz da Zâmbia" e dirigir um apelo aos moçambicanos. Recusei-me a fazê-lo. Lembrei as advertências que havia repetidamente formulado. Não estava disposto a responsabilizar-me por garantias que não tinha a certeza de serem respeitadas.

Encontrei-me, nessa altura, num dos momentos mais difícieis que em toda a minha vida tive de atravessar, perante a decisão que se me impunha.

Os pedidos para que entrasse em Moçambique e tomasse a chefia da rebelião eram dos mais insistentes, trazidos pelas vozes mais amigas. Era dramático, para mim, sentir essa confiança.

O aeroporto de Lourenço Marques estava nas mãos dos "rebeldes" (antigos páraquedistas que o manteriam até aos últimos cartuchos) e descer da Beira, também não representaria problema.

Tive de ponderar os deveres que sobre mim recaíam, exactamente para corresponder a uma confiança que não podia, levianamente, trair.

Sabia que a minha presença iria dar falsas esperanças a muitas pessoas. Sabia que, se entrasse em Moçambique, os meus fiéis companheiros do "plano de emergência" arrancariam sem hesitações. Os enfrentamentos seriam brutais e cresceria o número de vítimas. Sem a mínima possibilidade de vencer. As condições em que o movimento tinha sido desencadeado davam todas as vantagenss ao inimigo. Por isso o haviam provocado.

Se podia jogar a vida, não tinha o direito de sacrificar as vidas de outros.

Perdi, sem dúvida, a minha melhor oportunidade de morrer. Quis salvar a possibilidade de outros continuarem a viver.

Decidi-me voltar a Blantyre. Trazia os olhos rasos de lágrimas. Estava certo de que poucos compreenderiam o sacrifício que fiz.

Do Malawi, no dia 9, enviei mensagem para a Beira. Ofereci-me ao "MFA" para ali me deslocar e tentar um compromisso. Responderam-me que não o consideravam necessário.

Tentei contacto com Lusaka para obter da "Frelimo" uma atitude contemporizadora que lhe daria a máxima credibilidade entre os moçambicanos da "frente interna". Consegui ter Mark Chona ao telefone, mas a ligação cortou-se. Não sei, até hoje, se foi acidente técnico ou desligar deliberadamente. Nunca mais voltámos a conversar.

Clique na imagem para ampliar

Escutando o RCM, soube da compreensível mentira de anunciarem ter sido cancelado o meu mandato de captura. Pensavam no meu regresso como última esperança. Ouvi os aplausos da multidão quando isso foi divulgado. O Gonçalo Mesquitela haveria de vir a dizer-me que tal ovação tinha levado todas as recordações semelhantes que conservara.

A verdade é que não os abandonei. Pensei muito mais nessa gente generosa do que em mim próprio.

Os meus deveres para com Moçambique, exigiam-me que assim procedesse.

Derradeiras mensagens
Quando me chegaram as derradeiras mensagens de Gonçalo Mesquitela dizendo-me ser-lhes impossível continuarem a resistir e dando-me conta das selvajarias ateadas pelos "democratas" nos subúrbios de LM, recebia também informação da Beira anunciando que o movimento capitulara.

As minhas filhas, que na Beira continuavam, tinham sido conduzidas por militares para ponto seguro onde sempre permaneceram. Não esqueço essa atenção amiga, embora outros telefonemas me indicassem que as retinham como reféns. Não creio que assim tenha sido, até porque isso nada alteraria as minhas disposições se elas fossem diferentes do que foram.

Através do receptor (e sempre gravando) acompanhámos os últimos momentos daquele "Movimento" generoso, improvisado e antecipadamente vencido.

Depois foi o silvar das ambulâncias, os crimes friamente cometidos, os excessos dos populares embriagados e drogados, os incêndios e saques, as centenas de mortos e os apelos das autoridades impotentes.

Moçambique tinha tido a sua "primavera de Praga".

Não se podem condenar os homens do "Movimento de Moçambique Livre" mesmo quando se sabe que a sua actuação impulsiva serviu os desígnios do inimigo e comprometeu, por muito tempo, todas as demais hipóteses que poderiam existir.

Faltou-lhes a serena decisão de o terem podido transfomar em simbólico gesto de protesto (utilizando os emissores que ocuparam) sem forçarem mais longe a confrontação. Mas não pode esquecer-se que a população tinha sido provocada com acinte, quando já suportara meses de insultos e atingira o limite da tensão nervosa.

Isso evidencia e agrava o crime dos que tudo encaminharam para que tal tivesse de acontecer.

Provei, nas páginas deste livro, que tentei impedir que assim fosse.

Houve outros que me impediram de o conseguir.

Costa Gomes e Melo Antunes ficam, por isso, na bancada dos réus que a história julgará.

Espero que também os julguem os homens que viveram estes tempos de tragédia. (...)

Entre baixios e baixezas
Na imagem: Samora Machel e Mário Soares (Acordo de Lusaka)

O texto do acordo entre o Estado Português e a "Frelimo", assinado em Lusaka em 7 de Setembro de 1974, chegou-nos a Blantyre (enviado ainda por Mark Chona) antes de ser publicamente divulgado. Foi a última deferência que teve para connosco, cumprindo aquilo que havia prometido.

Lendo-o, com a atenção merecida, podem nele encontrar-se expressões e intenções coincidentes com o nosso "Programa de Lusaka", de 1973. Por mais voltas que os negociadores tenham dado, não conseguiram libertar-se de tal influência. Não me considero honrado por isso e acentuo que nenhum vínculo existe entre os dois documentos, excepto o local onde foram produzidos.

(...) Vale a pena fazer alguns curtos comentários.

O Acordo Samora Machel-Melo Antunes

Do lado português, o papel foi assinado por oito plenipotenciários, entre os quais três ministros do governo e um conselheiro de Estado. Pelo lado da "Frelimo", entendeu-se ser bastante a assinatura de Samora Machel.

A delegação portuguesa foi encabeçada pelo ministro Ernesto Augusto Melo Antunes.

Segundo os hábitos correntes, o documento deve ser denominado como o "acordo Samora Machel-Melo Antunes", sendo a ordem dos nomes resultantes de Samora Moisés Machel haver assinado no lado esquerdo, por deferência que lhe foi atribuída.

À assinatura do Maj. Melo Antunes seguem-se logo as assinaturas de dois outros ministros (Dr. Mário Soares e Dr. António de Almeida Santos) e, depois, a de um conselheiro de Estado (Victor M. Trigueiro Crespo).

A cuidadosa vacuidade dos compromissos não obrigava a "Frelimo" a coisa alguma e, de resto, no tempo de transição que se seguiu, parece que ninguém teve preocupações a tal respeito. O Estado Português é que ficava amarrado a obrigações claramente definidas.

Houve um curioso artigo do acordo (a cláusula 18) que, desde logo, me prendeu a atenção.

Nesse preceito dispunha-se que "O Estado Moçambicano independente exercerá, integralmente, a soberania plena e completa no plano interior e exterior, estabelecendo as instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do Povo".
Como é normal que os estados independentes disponham de tais prerrogativas, poderia parecer redundância de advogado afirmá-las. Mas as coisas não se passavam por forma tão ingénua. Os factos vieram a comprová-lo.

Uma vez que o governo de Portugal tratava com a "Frelimo" a transferência "progressiva dos poderes que detém sobre o território", era óbvio que seria a "Frelimo" a personalizar o "Estado Moçambicano independente" e, portanto, a decidir (nos termos do citado artigo 18, do acordo Machel-Antunes) do estabelecimento das "instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do seu Povo".

Com isto, a potência soberana (Portugal) lavava as mãos de qualquer intervenção no acautelamento dos interesses das gentes e da sua autodeterminação. Era exclusivamente a "Frelimo" a decidir (como veio a acontecer, provando o acerto da minha preocupada interpretação) sobre o regime que entendesse mais adequado.

Compulsando os anais da descolonização em toda a África, não encontrei caso semelhante de abandono.

Passavam-se os umbrais da "descolonização original" conduzida por declarados democratas, e logo dois deles juristas, que ficavam indiferentes ao sacrifício da expressão da vontade popular.

Como deixei anteriormente descrito, todo o encaminhamento descolonizador que diligenciámos definir, em mais de um ano de intensa actividade, apoiava-se na consulta popular sobre a definição das estruturas políticas.

Quando me lembro das horas que passei, com Kaunda e Mark Chona, a deitar contas ao tempo necessário para o recenseamento e a discutir a forma de o tornar representativo, acabo por me convencer que a minha formação democrática se situava, afinal, muito por diante do que no acordo Machel-Antunes se definia.

Nítido se apresentava que ambos se inclinavam para outras fórmulas democráticas pelas quais viriam a revelar predilecção. Samora Machel veio a fazê-lo abertamente. Melo Antunes foi oscilando, conforme as conveniências, mas sem nunca o poder disfarçar inteiramente.

Assim nascem as cortinas que separam dois mundos. Quer sejam cortinas de ferro, cortinas de bambu ou cortinas de capim.

A autodeterminação dos povos ultramarinos tão explicitamente fixada no "Programa do MFA", cujos dizeres tive ensejo para recordar, desaparecia com uma penada de Samora Machel-Melo Antunes.

Verdade seja que Samora Machel não interviera na redacção do "Programa do MFA" e por isso não estava a ele obrigado. Mas Melo Antunes havia sido o principal elaborador desse documento.

Ou tinha o premeditado propósito de enganar ou faltou à palavra dada.

O naufrágio do Alto Comissário
O elenco do governo trnasitório, na parte que a Lisboa pertencia designar, nãao tranquilizou ninguém. Tratava-se de tecnocratas sem qualquer representatividade local e, por isso, desconhecidos por toda a gente. Não davam garantia de poderem estabelecer a "ponte" de colaboração desejável.

Desempenhavam mais uma comissão de serviço colonial, com a agravante de ser declaradamente transitória, para daí a uns meses voltarem a Portugal com emprego assegurado e qualquer que fosse a sorte dos moçambicanos.

Este começo desalentador agravou-se com a escolha do Alto Comissário: o comandante Vítor Crespo, para o efeito graduado em almirante.

Era geralmente desconhecido em Moçambique. Pelos jornais ficou a saber-se que ali tinha cumprido o seu normal tempo de serviço, a bordo de uma fragrata que patrulhava o litoral. Ficara com a ideia da linha da costa e dos portos em que entrara. Nestes, era exacto que tinha obtido notória popularidade.

Sem conhecimento apropriado das terras e das gentes que lhe competia descolonizar, dificilmente poderia ser o árbitro supremo que as circunstâncias, já de si complexas, exigiam. Veio isso a agravar-se com o facto de, durante o mandato que lhe foi entregue, não ter disposto de tempo para o contacto com os povos desse imenso território. Houve de compreender-se quando se soube quanto era retido em Lourenço Marques por tarefas absorventes.

No acto de posse, o Presidente da República conferiu-lhe a missão de "conduzir o processo de descolonização, com patriotismo, no respeito pelo nosso passado, pelos nossos maiores em África, e, acima de tudo, pela bandeira verde-rubra da Pátria, para que o novo Estado de Moçambique venha a ser efectivamente uma nação de expressão lusa e indestrutivelmente ligada à Mãe-Pátria" (cito de um semanário lisboeta, de 14 de Setembro de 1974).

Foi isto que o Alm. Vítor Crespo jurou solenemente, por sua honra, fazer.

E foi isto o que não fez.

Na imagem: Lourenço Marques

Logo em 21 de Outubro seguinte, aconteceu que uma unidade de "comandos" (farta de insultos incompatíveis com a sua dignidade) tomou desforço, quando foi provocada nas ruas de Lourenço Marques. Daqui nasceu a retaliação horrorosa que causou centenas de mortos entre a população indefesa, conforme os insuspeitos relatos da imprensa internacional. Houve carros incendiados, com os seus ocupantes dentro. Houve violações e violências em que todos os excessos se cometeram. Houve corpos trucidados em condições horripilantes.

O primeiro-ministro Joaquim Chissano chorou convulsivamente, no Hospital Miguel Bombarda, ao deparar com o macabro espectáculo que os médicos lhe mostraram.

O Alto Comissário, a quem pertencia a responsabilidade de defender a ordem pública (nos termos do acordo Machel-Antunes), não fez um movimento para proteger essa pobre gente que foi chacinada. Consentiu que os "comandos" fossem indignamente acusados de "irresponsáveis drogados" e não teve uma palavra de conforto para as vítimas imoladas. Nem um só dos responsáveis pelos morticínios foi detido, inculpado e presente a tribunal.

Assim mantinha a ordem e a paz que jurara preservar!

Sucederam-se as prisões arbitrárias, por simples suspeita ou denúncia anónima, feitas por milicianos armados, perante a passividade das autoridades. Os presos eram descalços, despojados do que possuíam e enviados para onde os algozes entendiam. Trata-se de casos testemuhados. Uma dessas vítimas (que foi deixada na cadeia quando da independência e ainda lá continua) foi acusada do crime de ter facilitado a passagem da fronteira a mulheres e crianças que fugiam daquele inferno. Tem sofrido tais suplícios que tentou o suicídio.

Na Beira, as prisões, nomeadamente as de carácter político, foram confiadas à polícia judiciária, dependente do Alto Comissário. Nessa polícia foi integrado, como qualificado agente, um criminoso de delito comum (o famigerado Zeca Ruço). Havia sido condenado, pelos tribunais regulares, a pesadas penas que foram esquecidas. No seu passivo figuravam roubos, assaltos à mão armada e fuga da cadeia. Era tido como um dos mais perigosos meliantes.

Assim entendia o Alto Comissário a dignidade!

Os monumentos portugueses, que eram património luso em Moçambique, foram apeados antes da independência. Alguns foram mutilados ou tratados sem qualquer respeito pelo que representavam. Existem fotografias documentadoras em que se alinham Mouzinho de Albuquerque, Vasco da Gama, Cardial Gouveia, Azevedo Coutinho, Sacadura Cabral e Gago Coutinho.

Tudo isto se passou sob o governo do Alto Comissário.

Assim entendia a defesa do respeito pelo nosso passado e pelos nossos maiores em África que lhe tinha sido cometida!

Numa entrevista que veio a dar, (...) sobre a descolonização, referiu que, os que tiveram de deixar Moçambique, não passavam de "racistas", "exploradores e reaccionários".

As dezenas de milhares de moçambicanos (de todas as cores e credos) que foram forçados a abandonar a sua terra, sob o mandato do Alto Comissário, e que tentam sobreviver pelo mundo, são a demonstração mais inequívoca de que isso não foi assim.

O Alto Comissário mentiu!

Sob a sua jurisdição foi conduzido à morte o Dr. Willem Pot, meu adversário de sempre e democrata convicto. Homem de cor, havia sido secretário de estado da comunicação social, no governo provisório de Moçambique. Por denunciar os campos de internamento, a falta de assistência jurídica aos presos e os abusos neles cometidos (no tempo do Alto Comissário), foi preso em Quelimane, torturado e inibido de receber qualquer socorro médico para a doença que o afligia. Libertaram-no para que não morresse na cadeia. Faleceu dias depois. Mas teve tempo de falar e possuo o testemunho do que disse.

Assim desempenhava o Alto Comissário as funções que lhe estavam entregues!

Para não alongar a lista das baixezas (que poderá ser completamente fornecida ao tribunal, quando chegar o momento) apenas mencionarei os presos abandonados em Moçambique, na altura da independência.

Somaram centenas, segundo provas indesmentíveis, quando o Alto Comissário deixou aquelas terras para retomar em Lisboa uma vida desafogada, sendo depois promovido a ministro, gastando o tempo por locais dispendiosos.

Se mais não foram os abandonados, deve-se isso à intervenção corajosa de três homens (Maj. Rebelo Gonçalves, Cap. Silva Marques e chefe de escala da TAP, Paiva Cardoso) que conseguiram fazer sair para Salisbury algumas dezenas dessas vítimas de cuja sorte o Alto Comissário se desinteressava. Descolaram da Beira às 10 horas do dia 25 de Junho de 1975, graças à abnegação dos tripulantes da TAP (chefiados pelo comandantee Conceição) que dormiram no "Boeing" à espera de poderem realizar essa operação humanitária.

Nem sequer o consulado de Portugal, na Beira, dispunha de pessoal para assistir os portugueses. O Cônsul chegou, de Johannesburg, na véspera da independência e não dispunha de instalações e meios para atender os que o procuravam, aflitos. Com as instruções confusas de que dispunha, foram recusados passaportes a gente de cor que queria usar o seu direito de optar pela nacionalidade portuguesa. Eram abandonados à sua sorte.

Assim cuidava o Alto Comissário de preservar a expressão lusa do novo país.

Com tal procedimento entende-se tudo o que veio a acontecer depois.

Nada sucedeu por acaso. Tudo foi premeditado. (...)

Demolição de Moçambique
Quando regressei da Europa, encontrei uma situação confrangedora.

Na medida em que a evolução política portuguesa girava rapidamente para o extremismo comunista, sentiam-se reflexos em Moçambique que mais deterioravam o ambiente. Os postos chave ainda detidos por portugueses eram progressivamente ocupados por militantes marxistas. O figurino soviético surgia como padrão ostensivo da ideologia revolucionária e as existentes simpatias pela China popular eram metodicamente abafadas.

Fiz retirar os meus filhos que permaneciam na Beira e alguns pertences em que a família tinha maior estima. O resto ficou ali para ser tragado pela voragem.

Creio que levei longe demais o risco a que sujetei a minha gente. Saíram quase no último minuto possível.

O pânico crescia, compreensivelmente, entre a população. Queria-se precipitar a fuga, manipulando os justificados receios de tantas pessoas. Não interessava aos activistas que ficasse alguém, de qualquer raça, que pudesse oferecer-lhes o risco de esclarecer as massas que começavam a agitar-se.

Joaquim Chissano e alguns outros dirigentes diligenciavam, todavia, travar esse êxodo. Sabiam como se reflectiria na produtividade do país, no crescimento do desemprego e no consequente descontentamento. Não ignoravam ser-lhes impossível dispor de quadros para substituir os que partiam.

Um qualificado funcionário português escrevia-me, em fins de Novembro:

"Estou profundamente preocupado e mesmo apreensivo com o futuro de Moçambique que não antevejo nem fácil, nem próspero, nem calmo, nem seguro.

A Frelimo surgiu cheia de boas intenções, mas completamente vazia de quadros ou de estruturas e nos meses que passaram não se nota qualquer evolução. Apresentam-se, não só incapazes de resolverem os grandes problemas, como de os equacionarem ou até mesmo de tomarem deles completo conhecimento.

Os chefes responsáveis são sensatos, ponderados, encontram-se animados de boa vontade e possuem normal capacidade intelectual. Acontece, porém, que, entre eles (e são confrangedoramente poucos) e a massa bruta dos "camaradas" nada existe.

Todos estes dirigentes têm plena consciência da incapacidade da Frelimo para assumir realmente todas as funções directivas de um país independente".


Por outros canais fiéis chegavam-me cópias de relatórios oficiais enviados para Lourenço Marques ou para Lisboa alertando sobre a preocupante anarquia que se avizinhava. Concretizar a independência em tais condições, escrevia-se nesses documentos, equivalia a entregar o país a irresponsáveis que um bando de extremistas se preparava para dominar. Os que, honestamente, formulavam estes avisos, foram gradualmente afastados.

Houve dirigentes da "Frelimo" que também escreveram para Dar-es-Saalam expondo a gravidade da situação.

Mas Vítor Crespo, Melo Antunes e Costa Gomes insistiam em que tudo se acelerasse para a transferência crescente de poderes.

Teima-se na "descolonização original", mesmo sabendo as vítimas e os vexames que ela iria causar.

Não podia deixar de haver, por detrás dessa atitude, um propósito deliberado.

República Popular de Moçambique
Na imagem: os agentes signatários do Acordo de Lusaka (clique para ampliar)

Moçambique ascenderia à independência em 25 de Junho de 1975.

Pouco tempo antes, Samora Machel entrava no país, cruzando no norte a fronteira com a Tanzânia. Vinha acompanhado (ou tutelado) por Marcelino dos Santos.

O grupo que tinha ficado a rodeá-lo, em Dar-es-Saalam, desde o acordo com Melo Antunes reunia os elementos mais extremistas de declarada tendência pró-soviética.

A URSS havia trabalhado com eficiência e sem perda de tempo, desde que, em 1964, Mikhail Domogatskiy me anunciara a preocupação de recuperarem terreno sobre o avanço da influência chinesa.

Na impossibiilidade de dominarem as bases da "Frelimo" e de controlarem os militares que combatiam no interior do país, dirigiram a sua atenção para os elementos intelectuais com possibilidades de virem a exercer a decisiva influência. Constituiriam a minoria destinada a controlar as estruturas.

Marcelino foi o homem-chave que utilizaram. Este se encarregou de aliciar e doutrinar os demais.

Os homens mais prestigiosos foram progressivamente eliminados.

Filipe Magaya, chefe militar valoroso, foi abatido, com um tiro nas costas, quando atravessava um rio, no decurso de operações dentro de Moçambique. O assassino foi preso, mas nunca mais se ouviu falar dele. Diz-se que enlouqueceu, em Dar-es-Saalam, na cadeia.

Eduardo Mondlane, respeitado político de cultura e formação ocidentais, foi assassinado em ccondições que, singularmente, os posteriores dirigentes da "Frelimo" nunca se interessaram em investigar profundamente. O que se sabe é que o livro armadilhado foi entregue em sua casa por alguém que lhe deveria merecer a confiança de não hesitar em abri-lo. O crime não aproveitava aos portugueses.

Uria Simango, Padre Mateus, Lázaro Kavandame e Miguel Murupa tiveram de fugir da Tanzânia para salvarem as vidas. De todos, Só Miguel Murupa está em liberdade, na Europa. Os demais caíram em ciladas e encontraram-se em condições de não poderem, sequer, ser testemunhas perigosas.

Dentro de Moçambique, os comunistas organizaram o agrupamento dos "democratas" para minarem as estruturas e poderem opor-se a qualquer força política que surgisse no país.

Em Portugal, era preciso ocupar o poder governativo durante a fase activa da descolonização. Assim o fizeram.

A coordenação da jogada foi perfeita. Esse mérito tem de se lhes reconhecer.

O grupo marxista-soviético da "Frelimo" manteve-se, porém, em atitude discreta e só interveio para acelerar as negociações quando surgiu Melo Antunes como o enviado qua aguardavam. Até aí tinham apenas que retardar qualquer hipótese de acordo.

Existem elementos para afirmar que o próprio Samora Machel só passou a ser activamente trabalhado, no sentido doutrinário que lhes convinha, depois do acordo de 7 de Setembro de 1974. Até então, parece que não era efectivamente marxista. De outra forma não poderia ter enganado tão teatralmente o Dr. Kaunda que largamente o ultrapassa em cultura e experiência política.

Acontece, porém, que aqueles extremistas da "Frelimo" não contam no seu elenco qualquer negro prestigiado. Tinham que fabricar um. O mais fácil de produzir era Samora Machel e para isso beneficiaram dos meses que o tiveram ao seu exclusivo cuidado, enquanto a corrente nacionalista da "Frelimo" era enviada para dentro do país, onde a tentativa de organizar a independência os absorvia totalmente ante as dificuldades com que iam deparando.

Quando Samora Machel iniciou a série agressiva dos seus discursos e tomou atitudes revolucionárias intransigentes, pode dizer-se que houve surpresa geral. Surgiu a preocupação quando as declarações, os insultos e as ameaças foram crescendo ao longo da viagem. Possuo gravações directas que também me assombraram.

Com o zeloso ardor dos recém-convertidos, Samora Machel falava como quem aprendeu a lição de cor, mas metendo, por vezes, coisas da sua lavra sem se dar conta das monstruosas contradições doutrinárias evidenciadas.

Nos nacionalistas da "Frelimo" houve um movimento de agitação e nos países africanos que mais tinham apoiado a guerra de libertação esboçou-se quase incredulidade.

Joaquim Chissano voou apressadamente para Quelimane, onde Samora Machel tinha ultrapassado os limites da inconveniência, sabendo estar numa região que lhe era hostil. Chissano tentou explicar ao presidente as consequências da acção que estava a realizar. Segundo testemunho identificado, o choque foi quase duro, mas Chissano não conseguiu mais do que adiar a anunciada alteração do nome de Lourenço Marques. Nada ganhou com isso porque meses depois havia de se fazer essa modificação e para pior. Em vez de Cafumo chamar-se-ia Maputo, sem ao menos se atentar no ridículo a que tal nome se presta.

Ainda houve quem sugerisse que a capital passasse a denominar-se MONDLANE, em homenagem ao sacrificado fundador da "Frelimo". Samora Machel nem quis considerar isso e Marcelino dos Santos opôs-se violentamente, criticando as tendências anti-revolucionárias que se abrigam no culto das personalidades.

O nome de Mondlane não podia, obviamente, ser por eles aceite (ob. cit., pp. 347-349; 351-354; 357-363; 375-376; 381-383).

Continua

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (iv)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Palácio do Kremlin

Jornalistas russos em Moçambique

Durante as festas da independência do Malawi (Julho de 1964) encontrei-me, ocasionalmente, em Blantyre, com o enviado do "Pravda", de Moscovo, Mikhail Domogatskiy e estabelecemos certa convivência. Ajudei-o nas facilidades de que carecia para fazer o seu trabalho. Ficou entre atónito e desconfiado quando lhe disse a minha nacionalidade e, mais ainda, a terra em que vivia.

Voltámos a encontrar-nos e a conversar.

Perguntou-me se se podia visitar Moçambique e eu perguntei-lhe quando desejaria fazê-lo. Desta vez o espanto foi total pois lhe assegurei que o visto seria dado sem dificuldade, mesmo num passaporte soviético.

Inquiriu-me se eu falava a sério e se podia referir isso a Moscovo.

Insisti em que não estava a brincar e quanto a isso de consultar Moscovo era problema que, embora o compreendesse necessário, em nada me dizia respeito. Que o fizesse se tinha de pedir licença.

Conversei o assunto com o Dr. Hall Themido, do Ministério dos Negócios Estrangeiros que se encontrava no Malawi integrado na embaixada portuguesa a que presidia o Almirante Lopes Alves. Achou ousada a minha iniciativa mas deu-me todo o apoio. Também ele iria consultar Lisboa.

Tirei-me dos meus cuidados e telefonei ao Doutor Salazar pedindo-lhe que concordasse pois nada teríamos a perder. Mesmo que se tratasse de um agente soviético perigoso, certamente que não iria fazer contactos em Moçambique para nos fornecer o rasto da sua organização. Não me parecia que fosse obter mais informações do que aquelas que já tinha e podia sempre refrescar pelas vias de informação de que dispunham. Afigurava-se-me que o "Prava" não podia dizer pior do que aquilo que já dizia e que, neste terreno, tinha muito menos credibilidade do que os correspondentes americanos que escreviam, ainda por cima, em caracteres legíveis por toda a gente e em língua acessível a muitos. No aspecto positivo o que ficaria era a imagem de consentirmos a entrada em Moçambique mesmo a jornalistas soviéticos. E se eram outra coisa, além de jornalistas, nada se perdia em estabelecermos contactos.

O Presidente Salazar achou bizarra a ideia e atrevida a minha argumentação, mas o consulado português em Balntyre recebeu ordem para dar os vistos a soviéticos que eu recomendasse.

Passados dias, o meu amigo Domogatskiy deu-me o passaporte dele e o de um companheiro para serem postos os vistos. Ficou siderado quando, curtas horas depois, lhos devolvi já devidamente visados.

Antes de nos separarmos, em Blantyre, ficou de contactar de novo comigo para combinarmos a oportunidade da visita. Nisso me ajudou, e muito, um jornalista moçambicano interessadíssimo nesta "caixa".

O calendário rodou, foram-se trocando mensagens (incluindo abundante propaganda) e, finalmente, acordou-se que chegariam à Beira provenientes de Nairobi, e via Blantyre, dois enviados do "Pravda": o já conhecido Mikhail Domogatskiy e Tomas Kolesnichenko. Permaneceriam em Moçambique de 10 a 17 de Março de 1965.

Combinámos que para lhes facilitar a vida, evitando reacções de animosidade ou simpatia, os apresentaríamos como jornalistas austríacos e para o efeito lhes atribuímos os apelidos convenientes. Assegurámos ainda, que nada divulgaríamos sobre a sua visita antes de abandonarem o território.

Ficaram encantados com a ideia, planeámos a viagem a seu gosto e utilizámos o meu avião para irem onde quisessem deslocar-se.

Foram, aliás, simpatiquíssimos e o a ambiente de camaradagem havia de estreitar-se progressivamente ao longo daquela semana. Nunca me foi mais fácil e agradável, acompanhar jornalistas estrangeiros.

No dia seguinte à chegada, jantaram em minha casa, no Dondo. A família e, sobretudo, os pequenos mais velhos inteirados da real identidade dos visitantes, acolheu-os com hospitalidade fria. Mas pronto nos conquistaram com a exibição de notável e bem planeado malabarismo de propaganda.

Na imagem: Sputnik 1 (satélite espacial russo)

Para além do vodka e caviar que nos ofereceram, deram-me uma medalha comemorativa do lançamento do primeiro "sputnik" e trouxeram bonecas para as pequenas. Depois, num alarde de total domínio de informação, entregaram à minha mulher dois estojos com caixas de fósforos soviéticos (artisticamente coloridas) explicando que as tinham trazido de Moscovo porque sabiam que ela faz colecção!

A partir daí resolvemos que não merecia a pena esconder-lhes nada.

Apreciaram objectivamente o que lhes fomos mostrando e iam tirando fotografias sobretudo quando tinham oportunidade de deparar com exemplares de sub-desenvolvimento humano. Mas valha a verdade que os monumentos, ligados à história das descobertas, os entusiasmavam de igual modo.

Na Ilha de Moçambique, na casa que o Dr. Ferreira dos Santos colocara à disposição dos meus amigos "austríacos", tivemos a primeira conversa a sério. Reconheciam que se estava a fazer um esforço no terreno da educação e que o multi-racialismo se ia tornando realidade autêntica.

Não viam, porém, que possuíssemos estruturas para absorver a produção escolar em médio prazo e nem que tivéssemos recursos para essas estruturas preparar. Daqui resultava a inevitabilidade de produzirmos um proletariado, já sem vínculos tribais, que seria o alicerce da futura revolução.

Admiti que fosse assim, mas comentei que, não podendo inventar os meios, nos restava correr o risco. O que não podíamos era travar a ânsia pelo ensino. A liberdade humana tinha o seu preço e aceitávamo-lo na certeza de que o ciclo se encerraria por forma harmoniosa. A expansão do ensino era factor de progresso indispensável. Os períodos de transição dolorosa custam muito aos que os atravessam, mas contam pouco na projecção histórica das nações.

Ficaram atónitos com esta dialéctica e tomaram apressados apontamentos.

Impressionava-os muito, a presença chinesa que tinham notado na Beira. Viriam a alarmar-se com ela quando passámos por Lourenço Marques.

Por mais que lhes explicasse que era gente pacífica e radicada no território, não havia meio de me acreditarem. Domogatskiy disse-me haver passado oito anos na China (sabendo falar e escrever o chinês) e assegurava-me tratar-se de infiltração política que era preciso travar porque bem sabia como os chineses trabalhavam. Quase que se propôs fazer um curso de esclarecimento para as nossas autoridades policiais.

Depois, na Beira, mostrei-lhes armamento apreendido à "Frelimo" e todo ele de fabrico soviético. Não entendia eu esse apoio de Moscovo quando se sabia que, nessa altura, a "Frelimo" oscilava da órbita americana para a chinesa. Pediram-me fotografias com detalhes do equipamento e vieram a informar-me que se tratava de armas que haviam fornecido à Argélia, durante a sua luta contra os franceses, e que dali haviam sido desviadas para a "Frelimo" sem seu conhecimento ou autorização. Quase que estavam indignados por tal abuso.

Em Lourenço Marques, o meu amigo Domogatskiy pretextou um ataque de paludismo (que chegou a preocupar-me) para não acompanhar Kolesnichenko na visita programada ao colonato do Limpopo. Mas mal a caravana partiu, apareceu, fresco e bem disposto, no meu quarto, porque queria conversar comigo.

Estava, cavalheirescamente, preocupado com a ideia de que, depois de lhes haver dispensado tantas atenções, eu confiasse em que fossem fazer apreciações favoráveis. E isso não lhes era possível.

Tranquilizei-o e comentei que pouco me importava o que escrevessem porque muito mais me interessava o que vissem. Presumia, aliás, que o relatório que entregariam ao Partido seria coisa bem diversa do que o que publicariam no "Pravda".

Riu-se, aliviado, e assegurou-me que assim seria.

Depois referiu-me que não os preocupava a concorrência dos americanos, mas reconhecia que estavam com um atraso de 10 anos sobre os chineses. Trabalhando bem as élites da "Frelimo" poderiam, nesse prazo, ou talvez em pouco menos, recuperar o terreno perdido. Tudo estaria em que a libertação de Moçambique se não desse antes disso porque, então, seria uma fatalidade para a África, incapaz de conter o expansionismo chinês. Desse novo colonialismo nunca mais ninguém se livraria.

Pareceu-me sincero e quase que desejoso de dar uma ajuda para que aguentássemos o tempo de que necessitavam.

Na imagem: figuração da China comunista

Compreendi que a África Austral estava destinada a ser terreno de confrontação entre russos e chineses, sem que os soviéticos se resignassem a perder uma influência em que os outros lhes levavam vantagem. A nós ficava-nos algum tempo para manobrar procurando uma solução independente.

Muito do que se veio a passar, encontra explicação nesta estratégia que Domogatskiy (em 1965) me referiu. A Rússia sabia que se não se antecipasse aos chineses, correndo contra o tempo, poderia perder a cartada para sempre.

Quando a revolução de Abril (em 1974) consentiu aos comunistas que ocupassem o poder e a descolonização de desencaminhou para os rumos conhecidos, compreendi que os soviéticos haviam desencadeado a sua estratégia de antecipação. Tinham trabalhado bem e depressa (em Portugal e em África) recuperando o atraso e estavam ansiosos por não perderem a vantagem.

Isso explica a violenta intervenção em Angola e o que está acontecendo em Moçambique.

Interessa reter este aspecto, para se entender quanto referirei adiante.

Quando Kolesnichenko voltou ao Limpopo, ao fim da tarde, preparámos o jantar de despedida.

Durante ele convidaram-me, sem qualquer constrangimento e perante outras pessoas, a retribuir a visita deslocando-me à União Soviética como hóspede do "Pravda". Aceitei com uma só restrição: não queria fazê-lo no Inverno pela dificuldade em suportar o frio.

O convite veio noticiado nos jornais de Moçambique (em 19 de Março) quando se revelou, com algum escândalo nacional, que aqueles correspondentes russos haviam percorrido, na minha companhia, mais de 5.000 quilómetros de norte a sul do território, deslocando-se onde tinham querido.

A despedida, na Beira, foi afectuosa e teve mesmo aspectos de emotividade.

Os russos são sentimentais como nós, e tinha-os visto chorar ao escutarem o fado, num retiro castiço, apesar de não entenderem uma palavra. Não estranhei porque sinto o mesmo quando oiço as baladas russas.

Sobre o convite para me deslocar a Moscovo nunca mais tive notícias directas, apesar de havermos mantido correspondência durante meses. Por amigos comuns fizeram-me chegar, delicadamente, a informação de que tal não era de momento possível dada a oposição influente, contra tal visita, por parte do Partido do Dr. Álvaro Cunhal.

Perplexidade americana
O curioso é que, na minha seguinte visita a Lisboa, a embaixada americana me dispensou um interesse a que não estava habituado. As minhas simpatias pelos EUA nunca haviam sido muito pronunciadas, o que não me impedia de estimar individualmente alguns cidadãos americanos.

Por intermédio de Ted Xantaky, que comigo trabalhava na "Sonap", aceitei assim um convite para almoçar com o embaixador Anderson que conhecera em casa dos Almirante Sarmento Rodrigues quando visitara Moçambique.

O embaixador não esperou pelo café para se referir à visita dos jornalistas do "Pravda" e para me alertar quanto ao que haviam escrito. Acrescentou que sabia tratar-se de perigosos agentes soviéticos que se encobriam sob aquela capa.

Agradeci a boa intenção do aviso mas não lhe dei tempo para me mostrar as informações de que dispunha porque logo o esclareci de que também eu sabia de quem se tratava.

E passei a confirmá-lo. Domogatskiy era o encarregado de penetração soviética na África Oriental, tinha servido, com distinção, nas tropas pára-quedistas durante a última guerra mundial, nascera em Voronege em 1923, tinha-se diplomado em ciências históricas, estivera em Peking de 1953 a 1961, dispunha de invulgar cultura e, sendo conhecido pelos seus sentimentos anti-maoístas, fora colocado depois na Europa e em países do Médio Oriente até ser, finalmente, transferido para Nairobi. Quanto a Kolesnichenko (filho de um alto dignatário soviético) nascera em 1930, tinha-se igualmente formado em ciências históricas, especializando-se em assuntos africanos, muito jovem ainda, havia sido um dos mais influentes conselheiros de Patrice Lumumba sobre quem escrevera um livro que tinha sido premiado e estivera em Zanzibar na altura da revolta contra o Sultão que terminara no trágico massacre dos árabes, encontrava-se baseado em Lusaka e era responsável pela subversão na África Central.

O embaixador Anderson confirmou tudo isto mas perguntou-me como é que, sabendo-o, os havíamos convidado. Limitei-me a observar que era por o sabermos que, exactamente, o tínhamos feito.

Quanto aos artigos que tinham escrito para o "Pravda" não os considerava agradáveis embora fossem muito menos agressivos do que outros publicados por respeitáveis e conhecidas revistas norte-americanas. Tinha, além disso, a vantagem de aparecerem num jornal com posição ideológica conhecida.

Deixei a embaixada, com Ted Xantaky, para que o perplexo embaixador pudesse preparar os seus comentários para Washington.

Na imagem: Muralha da China

Já que tinham impedido de me aproximar de Peking, gostava de os preocupar com Moscovo.

Estimaria voltar a conversar hoje com Domogatskiy para que me explicasse como conseguiram a espectacular recuperação soviética no seio da "Frelimo".

E, sobretudo, como poderão arredar definitivamente os chineses que estão longe de terem perdido as últimas cartadas.

É que me mantenho fiel às minhas preferências.

Na opção com Moscovo, continuo em favor de Peking.

(...) As propostas do Dr. Kaunda
No dia 23 de Julho, Pombeiro de Sousa e eu tomámos, em Blantyre, o avião da "Zâmbia Airways" que deslocou às 13.30.

A bordo serviram-nos uma refeição em que quase não toquei e pouca atenção me mereceram as informações do comandante, italiano, quando sobrevoámos Cahora Bassa. Tudo, para mim, se concentrava no destino.

Nem de "visto" dispunhamos mas tudo estava perfeitamente organizado em Lusaka onde nos esperava Mark Chona, assistente pessoal do Presidente Kaunda, acompanhado por Peter Kassanda e Bosco Chibanda. Não podíamos ser recebidos com maior simpatia e instalaram-nos no Hotel Intercontinental, situado junto do bairro diplomático. Recordo que fiquei no quarto n.º 606 e que os nossos anfitriões se ocuparam dos mínimos detalhes à nossa comodidade.

Deram-nos tempo para descansar um pouco mas, Pombeiro de Sousa e eu, aproveitamo-lo para dar uma olhadela em redor e pudemos, assim, comprovar que existia discreto serviço de segurança que nada nos incomodava. Visavam mais proteger-nos contra qualquer interferência desagradável (em Lusaka estavam instalados diversos "movimentos de libertação") do que vigiar o que fazíamos. Notámos isso com apreço.

Ainda nos parecia um sonho estarmos, finalmente, na Zâmbia.

Vieram buscar-nos pontualmente para nos conduzirem à "State House", residência oficial do presidente da República, de marcado estilo colonial britânico, com os jardins e parques arrelvados impecavelmente conservados, e onde sentinelas imperturbáveis montavam a guarda, como se vivêssemos sob o Império de Sua Majestade.

É facto que em todos os países que conheci, de antiga soberania inglesa, foram, invariavelmente, mantidos esses hábitos importados de Albion. No Malawi, no Pasquitão, na África do Sul, na Zâmbia, na Rodésia e na Índia, o aprumo era sempre o mesmo na marcialidade da guarda, no delicado protocolo do acolhimento e na dignidade natural das instalações conservadas sem alteração. Talvez que só na Índia tenha notado um certo desleixo, mas pode bem acontecer que eu tenha sido influenciado por ali me ter cruzado com gente de uniforme usando, descuidadamente, o pouco marcial chapéu de chuva.

Na imagem: Real Brasão de Armas do Reino Unido

Observei, mais uma vez, que os britânicos haviam sido notáveis colonizadores (e sobretudo hábeis descolonizadores) deixando marcados, bem fundos, os traços da sua presença. Até a maioria dos monumentos e dos nomes (das ruas ou das localidades) perdura com respeito, nesses países que visitei.

Se tinham conseguido isso, apesar do seu inveterado racismo, certamente que melhor poderíamos alcançar nós, apoiados no convívio multi-racial.

A Frelimo não era comunista

O Presidente Kaunda recebeu-nos, com afabilidade, numa entrevista que se prolongou das 17.15 às 19.30. Estava acompanhado por Mark Chona e por Peter Kassanda que ia tomando algumas notas.

Tudo quanto eu pudesse ter previsto para este encontro inicial foi superado pelo que se passsou.

Trajando impecavelmente, com certa informalidade estudada, o Dr. Kaunda evidencia simplicidade e natural simaptia, capazes de conquistarem os que se acerquem mais desconfiados. Não fuma, mas preocupa-se em que tudo esteja disposto para comodidade dos que usem fazê-lo e, enquanto conversa, acaricia sempre um lenço que torna mais fáceis os movimentos das suas mãos expressivas.

Depois das saudações de cortesia, passámos a aspectos essenciais, interessando-se por conhecer a situação em Moçambique e o sentido exacto da política da "autonomia progressiva". Tudo lhe descrevi em detalhe, salientando o desejo generalizado de adquirirmos autêntica independência multi-racial com participação dominante da maioria. Informei dos passos decisivos que se haviam dado na criação das estruturas preparatórias (autonomia orçamental, participação das populações na eleição dos orgãos administrativos, acréscimo de poderes da administração local, manutenção da moeda própria com reservas a ela afectas, capacidade de contrôle sobre as importações, constituição de organismos de crédito habilitados a negociarem operações de financiamento, desenvolvimento do ensino sem quaisquer discriminações na frequência, recrutamento de unidades militares de incorporação moçambicana, etc.) consolidando os propósitos enunciados pelo Primeiro-Ministro.

Salientei que a independência política pouco representaria se não existissem previamente essas estruturas sem as quais seríamos arrastados para a órbita de potências estrangeiras. Mencionei-lhe as condições muito especiais da posição geográfica de Moçambique (fronteiriço com seis países: Tanzânia, Malawi, Zâmbia, Rodésia, Swazilândia e África do Sul) de que lhe resultavam relações que haviam de encarar-se com o maior realismo.

Não omiti as minhas preocupações sobre o conteúdo ideológico marxista da "Frelimo", apontando a limitada influência que tinha sobre a população moçambicana (mesmo admitindo os dados divulgados pela "Frelimo" quanto à sua penetração no território) e critiquei certos procedimentos de guerra que utilizava, numa luta em que, militarmente, nunca se poderia arranjar uma solução.

Parecia-me que estávamos no momento de procurarmos a fórmula negociada que, considerando todas as forças em presença, permitisse estabelecer a paz. Referi as diligências que de há muito se vinham realizando na busca de soluções com a activa e experimentada intervenção do Presidente Banda.

O Dr. Kaunda ouviu-me, sem interromper, com enorme atenção. Pombeiro de Sousa interveio reforçando um ou outro ponto da exposição que previamente havíamos concertado. Mark Chona revelava o maior interesse e fazia sinais de favorável entendimento. Peter Kassanda enchia folhas do seu caderno de apontamentos, apenas erguendo os olhos quando algum ponto lhe parecia mais significativo ou surpreendente.

Notei que o Presidente Kaunda sabia escutar e não perdia palavra do que se dizia.

Quando terminei, agradeceu o desenvolvimento e o interesse da minha exposição, mostrou-se surpreendido por se haver ido já tão longe em aspectos na verdade essenciais para se estruturar todo o funcionamento de um país e muito apreciou saber da existência de uma "frente interna" que se encaminhava para uma solução política que visava atingir a independência. Perguntou-me se haveria muita gente pensando como eu, designadamente no sector não-africano cuja confiança era necessário conquistar, para se manterem as actividades produtivas, enquanto se processasse a evolução.

Expliquei não ser possível mencionar números e nem sequer índices seguros. Mas o mais importante seria saber-se em que sentido evolucionava a opinião do sector que referira e que incluía muitos moçambicanos esclarecidos e dos melhor preparados. Essa tendência apresentava-se francamente positiva e referi vários sinais que o comprovavam. Entretanto, exercíamos discreta acção mentalizadora por intermédio dos orgãos da imprensa e da rádio que já controlávamos.

Admiti a existência de alguns elementos extremistas, de ambos os extremos, que não seriam recuperáveis para esta tarefa e que teríamos de afastar do território, quando chegasse o momento, se persistissem em manter a agressividade perturbadora. De qualquer modo, tratar-se-ia de escassas centenas, se a tanto o seu número chegasse.

Outro ponto abordado, pelo Dr. Kaunda, foi o da efectiva vontade do Governo Português prosseguir uma política integrada nos moldes preconizados e da capacidade de Marcello Caetano para levar a cabo essa tarefa.

Na imagem: Brasão da Costa do Marfim

Com total sinceridade dei esclarecimento idêntico ao que transmitira, em Paris, ao Presidente da Costa do Marfim, acentuando que confiava em que Marcello Caetano fosse capaz de dominar os grupos de pressão que se lhe opunham, sobretudo depois das eleições fixadas para Outubro desse ano, em que era de prever uma sólida vitória do Presidente do Conselho. Se isso não acontecesse, ou se o Doutor Marcello Caetano não soubesse usar a sua autoridade, seria inevitável uma confrontação revolucionária, de iniciativa de qualquer das tendências extremistas.

Por mim, não hesitaria, numa ou noutra dessas situações de crise, em antecipar-me tomando a iniciativa de um golpe de estado em Moçambique.

O Presidente Kaunda manifestou que o mais desejável seria realizar tudo na legalidade, ainda que isso significasse demorar-se mais algum tempo a alcançarem-se os objectivos.

Em seguida, procurou tranquilizar-me quanto aos meus receios de influência marxista na "Frelimo", assegurando-me que essa imagem era errada, não correspondia à ideologia dos dirigentes responsáveis e havia sido fabricada pela propaganda adversa. Considerava indispensável que deixássemos de identificar a "Frelimo" como um movimento comunista (embora no seu seio pudessem existir alguns elementos não significativos com tal formação ou tendência) e garantiu-me que Samora Machel, que bem conhecia, preconizava programa muito próximo daquele que expusera.

Pediu-me, insistentemente, para acreditar nas certezas que me transmitia.

Objectei, citando textos e declarações de Marcelino dos Santos que evidenciavam uma linha doutrinária marxista-soviética que não consentia dúvidas e contei o episódio do nosso encontro no aeroporto de Genève. O Dr. Kaunda comentou ironicamente: "Mas quem é Marcelino dos Santo? Pouco tenho ouvido falar nele. E o que pode representar dentro da Frelimo"?

Insisti em que Marcelino dos Santos era o vice-presidente da "Frelimo", que participara no triunvirato estabelecido depois do assassinato de Mondlane e que vencera o enfrentamento com Uria Simango (cujo prestígio naquele movimento tinha sido muito grande) acabando por o afastar. Não me parecia, pois, que se tratasse de personagem com tão pouca importância. Contava, para mais, com o apoio da União Soviética que o tinha como homem de sua confiança.

O Presidente Kaunda foi terminante, com veemente apoio de Mark Chona, nas garantias que me repetiu e pediu-me que as aceitasse como fruto do seu profundo conhecimento da "Frelimo" que acompanhava nos assíduos contactos que mantinha com Samora Machel.

Nesta posição, tão firme, de Kaunda, não me pareceu delicado insistir, mas não fiquei totalmente convencido. Voltei ao tema, como referirei, noutras oportunidades.

Ao longo desta importante e primeira entrevista o Dr. Kaunda referiu-se, com apreço, à atitude das autoridades portuguesas para concederem à Zâmbia acrescidas facilidades de transporte, através de Moçambique (via Malawi). Acrescentou que o comportamento dos portugueses o havia agradavelmente surpreendido e sabia apreciar a a influência exercida pelo Presidente Banda, bem como a minha intervenção de que se mostrou perfeitamente informado.

Retorqui que essa orientação se limitava a ser coerente com a política invariavelmente afirmada de assegurar o livre acesso dos países do interior aos portos sob soberania portuguesa, oferecendo o melhor serviço possível aos seus utilizadores e sem qualquer discriminação baseada em preferências políticas. Essa posição, de estrita neutralidade na observância de um dever, não tinha sido sempre bem compreendida (como no caso dos transportes para a Rodésia depois do bloqueio britânico e da ONU, em 1965) e era-me agradável saber quanto era, agora, apreciada, dado que diligenciaríamos mantê-la imutável no futuro.

Na imagem: Cataratas Vitória (no Rio Zambeze, na fronteira entre a Zâmbia e o Zimbabwe)

Não ocultei ao Presidente Kaunda que poderia, pessoalmente, enfrentar problemas com a realização destes contactos e deslocações a Lusaka, pelo que me parecia conveniente cobri-los com o pretexto da resolução de assuntos de transportes, perfeitamente aceitável pelos observadores, dadas as minhas funções de cônsul do Malawi em Moçambique. Era impossível ocultar por largo prazo estas minhas deslocações e mesmo as visitas ao Dr. Kaunda. O melhor seria dar-lhes aparências, para resposta coincidente às perguntas que, de várias ordens, viriam a surgir.

O Presidente Kaunda concordou inteiramente, combinando-se que esta minha primeira visita à "State House" seria classificada como de mera cortesia e, para tornar as aparências mais verosímeis, fixou-se para o dia seguinte, entrevista minha com Mr Aaron Milner que era, então, secretário geral do governo e tinha, a seu cargo, a coordenação do programa de transportes. Milner deslocava-se com frequência a Blantyre onde já nos havíamos encontrado.

Com esta combinação nos despedimos e Mark Chona veio a revelar-nos que o procedimento fora extremamente útil. Efectivamente, poucos dias depois de eu regressar ao Malawi, a diligente embaixadora americana havia-o interrogado sobre as razões da nossa presença e recebera resposta planeada. Assim conseguimos, com efeito, manter tranquilos os observadores incluindo os diplomatas portugueses, baseados em Blantyre, que só mais tarde vieram a saber do motivo das minhas frequentes deslocações a Lusaka (ob. cit., pp. 66-72 e 93-98).

Continua