domingo, 16 de setembro de 2012

Um Novo Livro de José Capela


Ao Balcão da Cantina (17)
Por: José Pimentel Teixeira
Caldas_xavier_relatorio_capaAcabo de receber um novo livro do historiador José Capela.
Trata-se da publicação, por ele organizada e comentada, de “Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1884”. Desde há décadas que José Capela vem publicando sobre a história e a sociedade moçambicana. Um trabalho que continua em azáfama, com múltiplas publicações (e, felizmente, também em registo electrónico), agora sediado no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto após quase quarenta anos de vida em Moçambique, como jornalista no período colonial e, depois, como conselheiro cultural na embaixada portuguesa em Maputo - José Capela é o pseudónimo usado por José Soares Martins na sua vertente de historiador.
Símbolos aqui das suas publicações, sempre lembrados, são o fundacional “Moçambique pelo seu povo”, editado em 1971 e que coligia cartas de leitores ao jornal “Voz Africana”, inaugurando a expressão publicada da palavra popular, e “O Vinho para o Preto. Notas e Textos sobre a exportação do Vinho para África”, texto tantas vezes evocado, mesmo por aqueles que nunca o leram, dada a temática, por um lado singular e por um outro tão identitária (o peso do consumo de “vinho português” nas modalidades de ascensão social e de urbanização), e o seu tão sonante título, que o torna curioso aos leigos, ainda que apenas ecoando uma linguagem administrativa de época.
Capela tem-nos dado um importante conjunto de textos sobre a história do país, para os quais julgo avisado convocar os leitores. Neles surgem três grandes eixos, ainda que neles não se esgotando o seu contributo, e os quais se cruzam nas análises:
a) uma abordagem às formas como os processos de formação do capitalismo português (então proto-metropolitano) moldaram as políticas assumidas na colonização de Moçambique e, como tal, as interacções com as populações locais;
b) um cuidado trabalho, assente sobre um exaustiva pesquisa arquivística, sobre o tráfico internacional transoceânico de escravatura no actual território moçambicano. Durante o período pré-colonial e mesmo durante as primeiras décadas do efectivo colonialismo, até à sua erradicação no início de XX. Uma vertente na qual Capela agrediu ideias superficiais: as que anunciam o precoce regime colonial português (isso dos “cinco séculos de colonialismo”, partilhado pelo mitos coloniais portugueses e pelos discursos nacionalistas moçambicanos); a da precoce proibição efectiva do tráfico nos territórios africanos reclamados em XIX por Portugal, bem como a ideia de que o referido tráfico esclavagista ter sido um fenómeno totalmente exógeno;
c) e, finalmente, um olhar atento sobre a especificidade e complexidade histórica das formações sociais na bacia do Zambeze, desde o estabelecimento do regime dos “Prazos”.
É esta última realidade que o precioso “Relatório de Caldas Xavier”, recentemente publicado, vem ilustrar. O seu autor foi um oficial que trabalhou na instalação dos caminhos-de-ferro em Lourenço Marques e nas obras públicas de Inhambane, sob o célebre Joaquim José Machado. E veio a morrer na campanha de ocupação do sul do país. O texto que agora se publica evoca o período em que dirigiu a Companhia de Cultura e Comércio de Ópio, com base em Mopeia, e na qual enfrentou a revolta de Massingire, que devastou a referida companhia em 1884. Capela traz-nos o texto, consciente do tom interessado, nada neutral, do seu autor. Mas recupera-o como marco fundamental para se entender a efectiva natureza do conflito que então brotou, que denotava as relações dos grupos sociais presentes.
No fundo o que este texto nos mostra é a reacção desses grupos sociais, comungados sob o velho regime dos Prazos, esse que deixou memória através dos seus agentes “muzungos”, “donas”, “achicunda”, “colonos”, e tantas outras categorias. E como todo esse espectro social conflituou diante da chegada da Companhia do Ópio, a primeira empresa capitalista, de plantação, a estabelecer-se na Zambézia, afrontando o sistema socioeconómico vigente e que ali decaía face ao novo período histórico que assim se inaugurava.
Como nos diz Capela a teia de conflitos e alianças que este “Relatório” desvenda, mostra como o que então se confrontou não foram entidades políticas, uma “resistência” ao invasor colonial ou uma mera confrontação racial. Nem tampouco se confrontavam grupos regionais ou mesmo “étnicos”, sob diversas alianças. O que a revolta de Massingire permite ver é a pobreza desses essencialismos, dessa forma de entender as entidades sociais como eternas e naturais. Ali, em 1884, em torno de Mopeia, o ataque e a defesa da “Companhia do Ópio” foram regidos pelos interesses económicos em choque. As perspectivas de acesso à produção e distribuição da riqueza e do poder que a ela conduz.
É sabido que a história não se repete. Mas também se sabe que convém entendê-la, para entender as suas dinâmicas.
Por isso mesmo parece-me óbvia a visceral actualidade deste texto. E a urgência em lê-lo. Que os livreiros nacionais cumpram o seu papel: encomendem-no.
(José Pimentel Teixeira/ www.ma-schamba.co/ Canal de Moçambique)
12.09.2012