quarta-feira, 12 de setembro de 2012

UM POUCO DE CRONOLOGIA

Em Lisboa, tem-se conhecimento do que se passa em Moçambique através de um breve comunicado lido na madrugada de sábado aos microfones do Rádio Clube Português, e emanado do gabinete do chefe do Estado-Maior General. Na sequência de uma onda de violência desencadeada a meio da semana, um grupo de reaccionários havia ocupado pontos estratégicos da cidade de Lourenço Marques, designadamente o Rádio Clube de Moçambique — a partir daí apelidado de «Rádio Moçambique Livre» — o aeroporto, os correios e a refinaria local.
No mesmo dia, o próprio general Costa Gomes lançou de Lisboa, através da Emissora Nacional, um apelo à população moçambicana. Seguem-se vários comunicados do gabinete do primeiro-ministro, e o Movimento das Forças Armadas toma posição, con­siderando a acção desenvolvida em Lourenço Marques «alta traição aos superiores interesses dos povos de Portugal e de Moçambique». No meio desta efervescência geral, a Presidência da República distribui um comunicado no qual se declarava que o chefe do Estado ratificava o proto­colo do acordo assinado em Lusaka, no dia 7.
No domingo, Samora Machel emite de Dar-Es-Salaam uma dramática mensagem que em Moçam­bique só viria a ser radiodifundida na quarta-feira seguinte, depois de os revoltosos se renderem. Nessa mensagem, ouvida em Lisboa, o presidente da FRELIMO exorta os militares de Moçambique, pre­tos e brancos, a fazerem respeitar o acordo assinado em Lusaka, e classifica o que se estava fazendo em Lourenço Marques como obra de «bando de fací­noras, composto por criminosos de guerra, agentes da PIDE-DGS, e conhecidos representantes das for­ças exploradoras que tentam desesperadamente opor-se à vontade de paz do povo moçambicano e do povo português».
«O desafio desses elementos sem pátria e sem ideal — acentua Machel — é o de impe­direm a independência de Moçambique. Para isso, procuram provocar um clima de con­flito racial, de caos e anarquia, que sirva de pretexto para uma internacionalização da opres­são contra o nosso povo. Neste quadro, recru­taram forças mercenárias e buscaram o apoio de forças racistas e reaccionárias.» A terminar a sua alocução, Samora Machel, que sublinhara que «a FRELIMO não tolerará uma agressão imperialista», afirma:
«Proclamamos solenemente nesta ocasião his­tórica para o nosso povo, o cessar-fogo completo em todo o território moçambicano entre as forças da FRELIMO e do Exército português. As forças populares de libertação de Moçam­bique devem cessar imediatamente todas as operações militares dirigidas contra o Exército português. Devem ao mesmo tempo manter a máxima vigilância activa e actuar contra todas as actividades das forças reaccionárias, em colaboração com as Forças Armadas por­tuguesas, dentro do espírito do acordo de Lusaka.»
Em Lourenço Marques, o ambiente era, no do­mingo, cada vez mais escaldante. Uma manifestação de cerca de cinquenta mil pessoas, entre as quais também grande número de negros que se recusavam a sair do centro da cidade e a recolher ao «caniço» 'ghetto' onde habita a maioria negra), apoia os revoltosos e brande bandeiras nacionais ao mesmo tempo que o hino nacional é repetidas vezes entoado.
Gomes dos Santos, o provável cabecilha da revolta, recebe uma chamada telefónica que o vespertino lisboeta Diário Popular conseguiu para o Rádio Clube de Moçambique, e fornece esta visão da situação: «A população toda criou condições para que o presidente da República possa efectivamente colaborar com Moçambique, de maneira que não seja através de Mário Soares e Almeida Santos, e para que se chegue a uma conclusão.
«Não somos contra a FRELIMO, mas que­remos negociações bem definidas e bem escla­recidas, de maneira que Moçambique possa viver efectivamente em paz, com democracia e com dignidade. Da maneira como estavam a conduzir as coisas, com alguns elementos da FRELIMO a mandarem fechar as casas comer­ciais e fazendo uma greve colectiva até à inde­pendência, e não permitindo sequer o serviço dos Bancos e do comércio, rapidamente se chegaria a um estado de guerra civil, o que não pretendemos de forma nenhuma.
«O governo até pode ser totalmente negro, mas tem de ser um governo digno.» Gomes dos Santos afirmou ainda que só se aguar­dava a chegada a Lourenço Marques de represen­tantes do presidente da República, para se chegar a um acordo através de negociações. «Acataremos o que o presidente da Repú­blica ordenar. O que não podemos é cair num sistema de partido único.»
Gomes dos Santos, esclareça-se, saíra dos quadros do exército com o posto de sargento, e ultimamente era vendedor de automóveis de uma firma de Lou­renço Marques. Foi um dos fundadores do FICO, organização constituída na sua maioria por soldados desmobilizados ou expulsos das Forças Armadas, que logo a seguir ao 25 de Abril pretendeu congregar todos os brancos de Moçambique, com um programa de acção de combate à independência. Não veio, porém, a obter o apoio desejado.
O governo de Salisbúria, por intermédio do seu encarregado de Negócios em Lisboa, transmite ao primeiro-ministro Vasco Gonçalves o repúdio de Ian Smith quanto à acção desenvolvida pêlos dissi­dentes em Lourenço Marques, registando-se idêntica atitude do governo de Pretória.
Na cidade da Beira, centro de Moçambique, a propaganda lançada do emissor-pirata instalado no Rádio Clube ganha adeptos. Milhares de brancos manifestam-se frente aos quartéis dos pára-quedistas, os quais são forçados a fazer disparos para o ar. Rebentam duas granadas entre os manifestantes, que debandam, e no chão ficam vários corpos de feridos, dos quais dois viriam a morrer. De Lisboa, o brigadeiro Vasco Gonçalves faz apelos telefónicos dirigidos a Oscar Monteiro, elemento pre­ponderante da FRELIMO, no sentido de a FRELIMO não intervir na questão.
O número de ex-agentes da PIDE que estavam detidos e que são libertados em Lourenço Marques  pelos dissidentes brancos ascende a duzentos. Na rádio-pirata, começa a falar-se em linguagem codi­ficada com os «Dragões da Morte». E surgem com maior gravidade os incidentes nos subúrbios, onde, além das acções levadas a cabo por extremistas brancos, negros solidários com os rebeldes se dedicam a uma autêntica depuração.
A colónia portuguesa da África do Sul, que soma cerca de duzentas mil pessoas, toma partido, e pede ao Governo sul-africano que seja distribuída gaso­lina aos seus membros1 a fim de que estes possam seguir para Moçambique. Pretendem aqueles colo­nos «socorrer o nosso povo». A atitude surje na se­quência de várias mensagens transmitidas pela «Rá­dio Moçambique Livre» aos portugueses de Joanesburgo, para que estes venham em seu socorro.
Em Lisboa, de novo, verifica-se que os estúdios da Rádiotelevisão Portuguesa são guardados por um forte dispositivo militar. As estações de rádio, por seu turno, pedem também protecção, e Almeida Santos declara à Imprensa que «os reaccionários de Moçambique acendem a vela na campa da era colo­nial».
No Rádio Clube de Moçambique, e para evitar que forças militares penetrem no edifício ou dele se aproximem, é colocada à frente da fachada e nos diversos acessos uma autêntica barreira de mulheres e de crianças. Circula nessa barreira a afirmação de que as mulheres estão ali voluntariamente, dispostas a morrer se necessário. Corre a notícia de que se trata, na sua maioria, de mães de crianças que na madrugada de domingo haviam sido raptadas e depois devolvidas em pedaços1.
Ao mesmo tempo que se verifica um autêntico êxodo das populações brancas para a vizinha África do Sul, junto a cujas fronteiras o governo sul-africano instalou «campos de recepção» aos refugiados; ao mesmo tempo que se sabe ter a maioria dos ex-agentes da PIDE fugido para aquele país; ao mesmo tempo que de Lisboa chega a Lourenço Marques o enviado do presidente Spínola; ao mesmo tempo que nos subúrbios e em toda a cidade de Lourenço Mar­ques a violência grassa com exageros próximos da barbárie — em Lisboa regista-se a conferência de Im­prensa levada a cabo na Casa de Moçambique, no decurso da qual elementos daquele território afir­mam estar na posse de provas que levam à conclusão de que individualidades do regime deposto estavam directamente implicadas nos incidentes de Lourenço Marques.
Gita Bernardes, do elenco directivo daquela Casa de Moçambique, afirmou que desde os princípios de Agosto havia todas as noites nos subúrbios de Lourenço Marques duas ou três pessoas «mortas deli-beradamente por elementos da reacção que já anda­vam à solta». Que em viaturas estrangeiras e de Lourenço Marques tinham sido descobertas, durante aquele mês, numerosas armas, quando da realização de operações stop; que em vários barracões situados em pontos diferentes da cidade estava armazenada grande quantidade de armas.
— A reacção — sublinhou Gita Bernardes — não actuou face ao acordo de Lusaka. Actuou porque estava organizada, e tempo e oportunidades para isso não lhe faltaram.
1 Há quem afirme que os ocupantes rasgavam simultaneamente a bandeira portuguesa. Não nos foi possível obter confirmação.
1 Tradicional lutadora anti-racista. O governo sul-africano ne­gava «vistos» de entrada aos jornalistas da Tempo.
1Estava-se em plena crise de combustíveis.
1 Negado oficialmente. Na verdade, não há qualquer depoi­mento que, até à data, prove a veracidade do boato.