quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

A ULTIMA ENTREVISTA DE EDUARDO MONDLANE

“A QUESTÃO TRIBAL NA FASE AVANÇADA DA LUTA”
A ULTIMA ENTREVISTA DE EDUARDO MONDLANE
Também publicada na revista Tricontinental, no 12, Maio-Junho de 1969
P: Disse que a questão tribal na fase avançada da luta se tornara de certa forma num problema. Foi na actual fase?
EM: Sim, a altura em que surge o tribalismo, assim como o regionalismo, é a altura em que é iniciada a guerra psicológica. Quando o exército português é atingido pelas nossas forças, quando os portugueses se apercebem cada vez mais de que a FRELIMO é uma força a combater, como aconteceu em 1965-66, começam a inventar novos meios de resposta. Salazar lançou a propaganda em que apenas eles acreditavam: que não há Moçambique sem Portugal, que o Povo moçambicano é uma mistura de grupos tribais que nunca tiveram qualquer unidade. De acordo com os portugueses, a sua presença no nosso país impediu que se verificassem lutas fratricidas e problemas entre nós. Acontece que nada disto é verdade. Então como é que se prova, como é que se provoca aquilo que se deseja que aconteça? Os portugueses começaram a organizar as diferenças étnicas e de língua que porventura existiam entre a gente moçambicana e tentaram fomentá-las. Ou então tentaram infiltrar na FRELIMO indivíduos que eram de outra região para criar confusão entre os militares dizendo «vocês foram comandados por homens de outra região». Todos estes ataques falharam, mas não nos enganamos a nós próprios pois sentimos que ainda agora há pressões constantes para tornar o regionalismo ou o tribalismo num factor em todas as estruturas que criamos. Sabemos que o inimigo continua interessado em fomentar estes problemas e nós continuaremos a lutar contra eles.
P: Qual tem sido o trabalho efectuado junto dos chefes tribais?
EM: O que acontece em cada região onde estamos a combater é que qualquer chefe que seja contra a luta de libertação é afastado antes da acção militar se iniciar. Mas assim que a acção militar começa, ou se passa para o inimigo, ou é eliminado. Só os chefes que se tornam parte da FRELIMO, o que significa tornarem-se presidentes ou secretários de células, secções, distritos ou províncias do nosso trabalho, podem manter-se como tal. E nessa altura são exactamente iguais a qualquer um de nós. Portanto as funções que exerciam anteriormente tiveram influência na sua selecção apenas na medida em que tinham prestígio, tendo sido eleitos presidentes, mas uma vez iniciada a luta ela respeita ao povo de Moçambique no seu todo. E o chefe supremo não tem importância como tal nessa fase.
P: Em que é que a luta armada influenciou a estrutura política tradicional, os hábitos, etc.?
EM: A estrutura política tradicional foi de facto destruída pelos portugueses. Nalgumas regiões demorou mais tempo do que noutras. No Sul e nalgumas regiões do Oeste é de data recente. Mas mesmo assim, por exemplo, na minha zona, Limpopo, no Sul o rei dessa área só foi capturado e o nosso exército destruído em 1898, durante a juventude do meu pai.
A estrutura política praticamente desapareceu. Não existe uma estrutura política tradicional, a não ser o sistema de autoridade que reflecte o sistema administrativo que os portugueses perpetuaram. Mas mesmo este está dividido em pequenas unidades, nas quais o chefe supremo não é mais do que um polícia. Politicamente não tem qualquer valor no país. E a sua maioria são tão policiais que são desprezados pelo povo. A FRELIMO está a organizar uma nova estrutura política a partir de um vácuo político e tradicional. Existia de facto um sistema de autoridade, e algumas pessoas ainda respeitam o dirigente tribal. Mas estes dirigentes tribais, os que detinham influência real ou espiritual, foram sacrificados pela vontade dos portugueses de destruírem a tradição e de criarem uma nova administração portuguesa. Presentemente isto é muito favorável para a FRELIMO. Na nossa economia utilizamos o povo para produzir algodão, para produzir sisal, para produzir chá e outras coisas que os europeus querem. A gente das áreas rurais cultiva arroz, caju, etc., directamente para os interesses europeus. Nós dizemos-lhes: «Reparem, estão a ser explorados». E podemos apontar os excessos do chefe supremo, a forma como ele viola até o sistema de trabalho tradicional, porque a administração de Portugal lhe diz para o fazer, e quando ele faz coisas que a administração não quer que faça é humilhado em público, castigado com a palmatória, pelos portugueses.
Isto exemplifica a falta de poder que nós como povo sofremos em Moçambique. Portanto as estruturas do passado desapareceram e desapareceram para sempre. A FRELIMO tem que preencher o vácuo com uma nova política.
Os portugueses, dado que têm um regime fascista nos últimos 40 anos nunca encorajaram qualquer desenvolvimento das estruturas políticas locais tradicionais como os ingleses fizeram na África inglesa. Estamos, portanto, a viver uma situação nova.
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Inocencio Banze Visionário!!!!
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Shilla Angelo Belissimo o posicionamento e sobre tudo a capacidade de resposta, dado as circunstancias e o momento que o pais atravessava, porem agora atravo a dizer que Moçambique enquanto territorio é produto da conferencia de Berlim sabemos e mas do que isso as frontreiras sao fruto do construtivimos sociais.... Agora a questao do poder local e estrutura politica local ate hoje prevalece em Africa é so ver Como se transmite o poder dentro dos partidos no poder....
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Calton Cadeado O historiador, Michel Cahen diz que Portugal era uma "potência pequena" e não podia se dar ao luxo de usar o tribalismo na sua administração do território colonial. Segundo Cahen, usar o tribalismo seria "dar um tiro no próprio pé", pois Portugal corria o risco de criar um inimigo (tribalismo e guerras tribais) que não conseguiria controlar. 
Contudo, a unidade foi sempre uma bandeira inquestionável na trajetória do visionário Eduardo Mondlane e da Frelimo. O livro, a nossa luta, de Samora Machel mostra coisas interessantes, que vale a pena ver, sobre a unidade nacional!
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Carlos Augusto Eu Lancei um livro de Poesias no dia 30 de Maio de 2017, no hotel Resotel, em Maputo intitulada a “Patologia de Regionalismo” onde abordo sobre os perigos de regionalismo e tribalismo, e a importância de unidade nacional e combate a corrupção para a sobrevivência do Estado. 

Os Portugueses se foram, mas o regionalismo e tribalismo ainda permanecem, as vezes de forma latente, e noutras vezes se manifestam em vários escalões. 
Os conflitos étnicos, religiosos ou na base da região, em si são inevitáveis. Estes conflitos são bons, porque podem mudar algum status quo, mas se tornam um problema quando não são transformados de forma positiva, e alto grau de estadismo. 
Até aqui, em Moçambique Os diplomatas, estadistas e políticos estão a gerir os conflitos regionais e tribais.
Mas a dinâmica económica, relacionados com o desenvolvimento económico das comunidades , e a luta pelo poder politico entre as unidades constituirá uma pólvora para a violência, onde as diferenças identitárias (étnicas, regionais e religiosas) serão politizadas, e instrumentalizadas para a paz, unidade nacional, ou insurreição, autonomia e independência.

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