sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Para quando a descolonização das mentalidades?

Opinião

Para quando a descolonização das mentalidades?

O continente africano, na sua diversidade, produz conhecimentos e reflexões importantes para compreender os tempos injustos contemporâneos.
Descolonizar mentalidades é um dos desafios essenciais deste século.
No início de fevereiro uma peça televisiva da CNN, divulgada globalmente, denunciava o não cumprimento, por Moçambique, das sanções decretadas pela ONU à Coreia do Norte. As demonstrações militares de Pyongyang revelam que as sanções interditando a continuação da pesquisa nuclear não surtiram efeito. Este país possui hoje um arsenal nuclear militar testemunhado pelos ensaios de mísseis de longo alcance. Esta realidade levou ao endurecimento, em dezembro de 2017, do embargo. Como frisou a embaixadora norte-americana na ONU, a comunidade internacional “deve cortar relações comerciais com o regime, interrompendo todas as importações e exportações, e expulsar todos os trabalhadores norte-coreanos”.
Um relatório da ONU de setembro de 2017 citava 49 países (incluindo Moçambique) que supostamente colaboravam com Pyongyang, ignorando as sanções. Em resposta o Governo moçambicano garantiu defender o desarmamento nuclear, declarando-se aberto a colaborar com os peritos da ONU no esclarecimento da suspeita. Na peça, a CNN acusa Moçambique de se esquivar à aplicação das sanções, valendo-se de uma rede secreta de empreendimentos de pesca, funcionando como fachada dos negócios militares. Esta peça, como muitas outras produzidas no Norte Global, peca por não considerar os países africanos como parceiros de um diálogo global.
Os EUA têm liderado a campanha contra o regime de Pyongyang, posição fortalecida pela Administração Trump. Mas esta situação não é nova. A Africom, o comando militar dos EUA para a África, criado em 2007, controla as operações militares norte-americanas na maioria dos países do continente. Se a face pública da Africom é o apoio ao desenvolvimento, a sua missão real é “deter ameaças transnacionais, promovendo os interesses dos EUA, assim como a segurança regional, a estabilidade e a prosperidade”. Desde a anterior administração que a política norte--americana em relação a África tem tido como objetivos centrais o “fortalecer das instituições democráticas”, o “estimular do crescimento económico” e “o avanço da paz e da segurança”. Na prática, esta estratégia tem-se desdobrado em múltiplos engajamentos militares e pressões políticas dos EUA em várias regiões do continente.
No centro da peça da CNN está a já referida empresa de pesca, fruto de uma parceria entre os governos de Moçambique e da Coreia do Norte. A presença de dois arrastões de pesca no porto internacional de Maputo foi a prova apresentada pela CNN para suster a acusação de violação flagrante das sanções. Porém, como a agência de notícias moçambicana reportou, a empresa de pescas foi dissolvida, por ordem do Governo e em linha com a posição da ONU, antes de a CNN ter realizado a sua investigação, em dezembro de 2017, mas estes factos não foram tidos em atenção.
A Coreia do Norte mantém uma relação de amizade longa com Moçambique, país com que se solidarizou durante a luta anticolonial. Uma luta em que os EUA se posicionaram do lado do regime colonial português, desafiando as decisões da ONU sobre o direito dos povos africanos à autodeterminação. As acusações que a notícia divulgada pela CNN contém não só não dialogam com esta história recente, como reafirmam a política norte-americana de “quem não está connosco está contra nós”.
O problema é a informação parcial, sob a forma de acusações, apresentada como verdades. Longe de mim afirmar categoricamente que o Governo de Moçambique está isento neste caso. Mas cabe a qualquer meio de informação digno fazer um trabalho de qualidade, ouvir opiniões substantivas e não avançar com meias verdades. Os produtores de informação, incluindo os jornalistas, usaram factos para apoiar uma formação específica de poder. Porém, os factos não existem no vácuo; são “descobertos”, porque há interesse nisso, e a exposição dos factos procura dar resposta a determinadas preocupações. Se as preocupações mudam, é possível produzir factos diferentes e avançar com explicações alternativas. Esta crítica não significa que não podemos demonstrar ou provar que estamos perante um caso de boicote às sanções. Argumento apenas que a informação usada para demonstrar o suposto boicote por Moçambique das sanções é social e politicamente maleável. Assim se faz terrorismo informativo. Assim se continua a escrever sobre o continente africano, sem ouvir os seus atores.
O continente africano, na sua diversidade, produz conhecimentos e reflexões importantes para compreender os tempos injustos contemporâneos. Uma descolonização epistemológica, para ser efetiva, deve combater o apagamento generalizado dos atores políticos africanos e das suas contribuições para o conhecimento do mundo.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Portugal na ONU. Do império de Salazar ao país "centrado no seu umbigo"

70 anos da ONU

Portugal na ONU. Do império de Salazar ao país "centrado no seu umbigo"

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22 out, 2015 - 17:44 • Inês Rocha
Há 70 anos, nascia a Organização das Nações Unidas. Portugal aderiu com dez anos de atraso e numa posição difícil: recusava abrir mão das "províncias ultramarinas". E hoje? Portugal é um país “discreto” na ONU, diz historiadora.
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Desde que aderiu à Organização das Nações Unidas, em 1955, Portugal demorou mais de 20 anos a ganhar o respeito da comunidade internacional. As aspirações imperialistas de Salazar, que se recusava a abrir mão das colónias, colocaram o país, durante vários anos, no centro das discussões da Assembleia Geral da ONU.
A Renascença conversou com a investigadora Aurora Almada e Santos, com vários trabalhos publicados sobre o papel da Organização das Nações Unidas na descolonização portuguesa. A historiadora, de origem cabo-verdiana, trabalha no Arquivo Municipal de Lisboa e é colaboradora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.
Aurora Almada e Santos ajuda-nos a recordar os momentos mais marcantes da história de Portugal na ONU, organização que completa 70 anos de existência no sábado.
1 – Dez anos de atraso na adesão
No dia 24 de Outubro de 1945, foram apenas 51 os estados que assinaram a Carta das Nações Unidas: os 26 que assinaram a Declaração das Nações Unidas, outros 20 que tinham declarado guerra às potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) antes de Março do mesmo ano e mais cinco que foram admitidos durante a conferência.
Desde a criação da ONU, Portugal mostrou interesse em participar, embora tivesse alguma desconfiança relativamente à organização. O país, que vivia sob o regime do Estado Novo, temia "que a organização impusesse uma liberalização do sistema político em Portugal" e que a entrada na ONU representasse "o fim da superioridade dos países de raça branca" em que Salazar acreditava, explica Aurora Almada e Santos, especialista em História Contemporânea.
Mesmo assim, Portugal não quis ficar isolado internacionalmente e, em 1946, decidiu avançar para uma candidatura.
O falhanço da primeira tentativa portuguesa ficou a dever-se ao veto da União Soviética, que alegava que Portugal tinha apoiado a Alemanha durante a II Guerra Mundial e que ainda mantinha relações com Espanha, que tinha colaborado declaradamente com as potências do Eixo.
Só em 1955, quando houve um "desanuviamento no panorama internacional" entre União Soviética e Estados Unidos, as duas potências aceitaram a admissão de um conjunto de países, no qual se incluía Portugal.
2 – A provocação de Salazar
Quando, em Fevereiro de 1956, o secretário-geral da ONU enviou uma carta ao governo português a questionar se Portugal administrava territórios não autónomos. Resposta de Salazar: Portugal não tem "territórios que pudessem ser qualificados como tal".
"Salazar tinha consciência de que estava a desafiar a ONU", diz Aurora Almada e Santos, recordando que já em 1951 o chefe do governo quis fazer uma revisão constitucional para que as colónias passassem a ser "Províncias Ultramarinas".
O ditador "pensou que conseguia, com argumentação legalista, com base na interpretação da Carta, pôr um travão à onda descolonizadora que algum tempo depois iria perpassar pela ONU", explica a historiadora.
3 – 1960: um marco histórico nas questões coloniais
O ano de 1960 é considerado um marco na actuação das Nações Unidas relativamente às questões coloniais.
As três resoluções que saíram da Assembleia Geral nesse ano determinaram que todos os povos tinham direito à autodeterminação e à independência. Definiu-se também o que eram territórios coloniais, conceito que há muito era debatido na ONU.
Aprovou-se ainda uma lista de territórios não autónomos que deviam aceder à independência, lista que contemplava todas as colónias portuguesas.
4 – A pressão da ONU a Portugal
Entre 1960 e 1974, Portugal esteve muitas vezes no centro da discussão no seio da ONU. O país recusou-se sempre a colaborar, nunca fornecendo informações sobre as colónias, que eram territórios praticamente desconhecidos para a comunidade internacional.
Embora não tivesse atendido aos apelos para que se aplicassem sanções contra Portugal, a ONU chegou a adoptar resoluções bastante penalizadoras para o país.
Entre 1968 e 1970, com a ascensão de Marcello Caetano à presidência do Conselho do Estado Novo, a ONU diminuiu o tom das acusações, na esperança de que Portugal revisse a sua posição. "Isso acabou por não ocorrer", conta Aurora Almada e Santos.
A partir de 1971, diz a investigadora, nota-se uma "grande associação" das Nações Unidas aos movimentos de libertação das colónias portuguesas, chegando mesmo a organização a atribuir o estatuto de observador aos movimentos. A ONU reconhecia-os assim como autênticos representantes das colónias portuguesas.
"As Nações Unidas quiseram retirar legitimidade a Portugal para representar as colónias, indicando que Portugal estava a representar unicamente o seu território europeu", explica a investigadora.
5 – O mito do "orgulhosamente sós"
Apesar de as resoluções terem sido aprovadas por esmagadoras maiorias, isso nem sempre representou uma oposição internacional à política colonial portuguesa.
Esse era o comportamento dos países nas sessões da Assembleia Geral, mas "não tinha tradução nas conversas a nível particular com os representantes portugueses", afirma a historiadora.
Nas Nações Unidas, os países eram constrangidos a votar a favor da maioria, mas na retaguarda a política colonial portuguesa tinha o apoio de vários países da América Latina, de países europeus como a França e a Alemanha e de países asiáticos como o Japão e as Filipinas. Os próprios Estados Unidos sempre tiveram uma posição ambígua, devido aos interesses estratégicos na base dos Açores.
6 Os desafios do Portugal democrático na ONU
Apesar de em 1974 e 75 ainda ter havido alguma tensão relativamente às colónias portuguesas, depois de Portugal ter iniciado a descolonização, as relações com a ONU e a imagem do país melhoraram substancialmente, diz a investigadora.
Hoje, a actuação de Portugal na ONU revela um país “discreto”, “centrado no seu próprio umbigo”, caracteriza Aurora Almada e Santos.
"Portugal tem participado em acções de manutenção de paz, já foi várias vezes membro não permanente do Conselho de Segurança, mas tem sido uma participação 'low profile'", diz.
Uma posição visível, por exemplo, no acompanhamento “bastante ‘soft’” (suave) do caso do activista luso-angolano Luaty Beirão. "Se por um lado, a nível oficial não parece haver nenhum tipo de pressão portuguesa sobre o regime angolano, por outro lado também já houve entidades portuguesas que o visitaram na prisão", afirma.

A investigadora considera que no futuro Portugal poderá ter uma "posição mais activa, assumindo a liderança em questões tão fundamentais como a questão dos refugiados, que interessa a todo o Mediterrâneo".

"Ninguém garante que daqui a uns tempos Portugal não possa ser destino de alguns dos barcos com refugiados que atravessam o Mediterrâneo em direcção à Europa", remata Aurora Almada e Santos.


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